A relação homem-fauna sempre foi amplamente documentada pelo cinema, que tem procurado, geralmente sob a marca Disney, antropomorfizar os animais, fazê-los ver como antagonista do comportamento humano para torná-los mais compreensíveis e próximos. Nada disso, porém e felizmente, acontece em “Professor Polvo” (My Octopus Teacher), documentário surpreendente em exibição há sete meses na Netflix, dirigido pela estreante Pippa Ehrlich e produzido pelo experiente James Reed, que tiveram a sorte de se conectar com Craig Foster, um naturalista e cinegrafista sul-africano que desde a infância pratica mergulho com snorkel. Foster é tambem o narrador da experiência que teve diariamente na floresta de algas das águas frias de sua África do Sul natal com uma fêmea de polvo, ao longo de um ano (duração do ciclo de vida do animal).

Uma descrição simples não parece grande coisa: o conto sobre a amizade entre um mergulhador e um cefalópode. Mas a maneira como o também documentarista Foster narra sua crescente obsessão por um polvo conquistou legiões de fãs, incluindo celebridades de opinião confiável como Jane Fonda. Isto se deve em parte ao visual deslumbrante de águas calmas, especialmente bem-vindo em tempos pandêmicos. Mas também porque – é preciso enfatizar – não se parece com outros documentários de animais. Sem reduzi-lo a um animal de estimação e dando-lhe um nome brega, o naturalista tem acima de tudo uma relação respeitosa com o animal, se aproximando dele com cautela para não assustá-lo. O fato de não usar roupa de mergulho ou tanque de oxigênio é essencial para o objetivo. Foster se familiariza com o polvo seguindo sua rotina diária, observando seus hábitos de caça e, acima de tudo, sua enorme sagacidade para evitar predadores – a sequência com o tubarão faminto é um must.

No documentário, o espectador se depara com coisas incríveis como os truques de camuflagem de um polvo para escapar dos predadores
No documentário, o espectador se depara com coisas incríveis como os truques de camuflagem de um polvo para escapar dos predadores | Foto: Netflix/ Divulgação

Magnetizado, Craig Foster é tomado por irreversível fascinação pelo pequeno polvo, e com o passar do tempo, torna-se também emocionalmente envolvido pelo molusco,cada vez mais próximo. A experiência do naturalista surge ainda bem detalhada em segmentos de entrevistas para a câmera que têm a franqueza de uma sessão de terapia. A ardente curiosidade de Foster reflete uma abordagem diferente da tradicionalmente autoritária dos conservacionistas. É como se o filme simplesmente deixasse o animal viver, confiando que o espectador tire suas próprias conclusões.

“My Octopus Teacher” é parte de uma tendência crescente nos filmes sobre a natureza de apresentar animais não apenas como objetos maravilhosos ou de estudo científico, mas com qualidades próprias, não espelhadas nas emoções humanas. O polvo-fêmea do filme é uma criatura vista como um ser distinto, com qualidades que nada têm a ver com os humanos. É por isso, entre outras coisas, que vem aumentando o interesse popular por filmes como “Professor Polvo”, especialmente tendo o pano de fundo urgente das mudanças climáticas.

Outras referências a conferir, com a certeza de encontrar uma refrescante intimidade emocional, entretenimento e informação, são o norueguês “Gunda”(2020), que acompanha o cotidiano de um porco, duas vacas e uma galinha perneta, produção executiva de Joaquin Phoenix; “Minha Vida como um Peru”(2011) descreve como o naturalista Joe Hutto criou uma ninhada de perus selvagens, os guiou pelas florestas da Florida, aprendeu a língua deles, soube conviver com seus instintos e sua inteligência e os levou de volta à natureza; “Kedi” (2017) também pode ser uma influência recente, em parte por sua popularidade, mas também por seus relatos detalhados sobre os gatos de rua de Istambul; e do lado mais convencional, “The Elephant Queen” (2019) também tem seu interesse.

“Professor Polvo” é, de fato , uma lição de humildade do homem diante dos mistérios da natureza e da necessidade de preservá-los.