DUAS DOSES ACIMA DO HUMOR
PUBLICAÇÃO
sábado, 15 de janeiro de 2000
Jota
De Londrina
Especial para a Folha 2
Começar com uma piada o necrológio do cartunista Don Martin, morto no último dia 6 em Miami aos 68 anos, ao contrário de ser um desrespeito é uma bela homenagem. A hipócrita formalidade que cerca a vida das pessoas e que levamos para o túmulo foi sempre um alvo despedaçado em seus desenhos. Mordaz, irônico, impiedoso, debochado, hilariante, violentamente engraçado, qualquer palavra dessas cabe em seu epitáfio. Seu estilo era algo raro no humorismo americano, sempre ralo, com pouca agressividade. Os seriados americanos de humor traduzidos para a televisão brasileira são uma boa mostra dessa falta de graça. Não é à toa que eles já vêm com risos gravados.
Don Martin já causava risadas a começar por seus bonecos destrambelhados, sempre com cara de idiotas e calçados com enormes sapatos de palhaço, constantemente com as pontas viradas para baixo. Seu humor era histriônico, na melhor tradição da torta na cara, paulada na cabeça, ações que usava habilidosamente para causar violentos ataques de risos. Não era um cartunista para fazer pensar e seus cartuns nem davam tempo ao leitor para isso: o riso atropelava tudo.
A revista Mad foi seu principal reduto. Começou ali sua carreira e construiu um espaço prestigiado, o Departamento Don Martin, como era chamada sua seção. Foi nessa revista, criada há 48 anos nos Estados Unidos, que seus cartuns muito loucos era assim, como loucos, que os humoristas da revistas eram apresentados ficaram famosos. Nascida como um instrumento vigoroso de ataque ao modo de vida americano, Mad acabou tendo um sucesso fabuloso em 1972 chegou a vender 2 milhões de exemplares mas com o passar do tempo foi sendo amaciada e assimilada pelo poderoso establishment americano. Hoje vende 500 mil exemplares e publica um humor borocoxô. Tornou-se uma triste paródia dela mesma; uma revista de humor para ser lida com aqueles risos gravados de seriados de humor americanos.
Don Martin publicou no Mad de 1956 a 1987, quando saiu brigado com o editor William Gaines por causa de direitos autorais. A causa da desavença foram direitos autorais, principalmente sobre os lucros fabulosos das republicações de seus cartuns em livros que vendiam aos milhões. Foi uma perda pesada para a publicação, que tinha no cartunista um de seus chamarizes de vendas. Além disso, Don Martin era o único que não havia perdido as características que tornaram Mad uma das revistas mais importantes dos Estados Unidos.
Mas o cartunista também perdeu. Mudou-se para a revista Cracked (que, editada no Brasil, foi chamada de Pancada, uma tradução bem doida; Mad também foi publicada aqui, em mais uma ridícula importação de cultura), mas lá as coisas não eram absolutamente as mesmas. Seus desenhos mantinham o alto padrão de sempre, mas o veículo não ajudava. Cracked, cópia de Mad, tinha todos os defeitos da original - já decadente - e vendia pouco, mesmo com a aquisição daquele que era o melhor de Mad.
A qualidade do trabalho de Don Martin era tamanha que até aqui, no Brasil, tinha admiradores entusiasmados entre gente do ramo. Henfil era um deles, tendo sofrido influência marcante do cartunista americano. No livro Diário de Um Cucaracha, lançado em 1976, conta sua visita à redação da revista Mad na tentativa de vender trabalhos para pagar os caros tratamentos a que se submetia em hospitais americanos em razão de sua hemofilia. Sua primeira impressão da redação Gente simples, coleguinhas, trabalhando em salas despojadas e cheias de papel, igualzinho a redação do Pasquim murchou logo com duas decepções: a revista raramente publicava colaborações avulsas e seu ídolo, Don Martin, não estava lá.
O entusiasmo do autor do Fradim não era gratuito. O humor de Don Martin é tão forte que agrada até especialistas. Tem muito do desenho animado americano, com pessoas esmagadas embaixo de pianos, cabeçadas violentas em pontes de concreto, furadeiras elétricas perfurando cérebros, violências variadas que fazem de seus cartuns peças inimitáveis de humor negro. É um continuador, no cartum, do tradicional sofrimento na história da comédia, em que sempre tem alguém levando pancada para a platéia rir.
Ele também usava e abusava da metalinguagem, recurso em que o artista se utiliza da própria linguagem para se comunicar. As onomatopéias fazem sua parte para o leitor se esborrachar de rir. Uma flor esguichando água na cara de um incauto é Sklishk; uma paulada na cabeça soa como Fwaddapp; o serrote batendo em alguém é Foinsapp; e um olho indo de encontro a um cigarro aceso? Sissafitz. E todas as personagens vivendo as situações com a cara mais aparvalhada do mundo.
Era impossível não rir de Don Martin, um dos melhores arrancadores de gargalhadas que já passou por este planeta. E sua regra era a mais simples possível, uma definição precisa de sua arte. É engraçado? Este é o único teste que eu aplico a um cartum.Morto no último dia 6, o cartunista norte-americano Don Martin levava o humor às raias do absurdo nas páginas da revista MAD
ReproduçãoDon Martin: seus cartuns muito loucos ficaram famosos na revista MADReproduçãoReproduçãoReproduçãoDon Martin extraía o humor do absurdo utilizando situações banais