Apesar de escrito pelo dramaturgo chileno Guillermo Calderón e se passar em São Petersburgo, na Rússia, o espetáculo “Neva”, do Armazém Companhia de Teatro, traz reflexões profundas sobre a realidade brasileira. A peça acompanha os acontecimentos do dia 9 de janeiro de 1905, que ficou conhecido como “Domingo Sangrento” após manifestantes russos serem fuzilados pela Guarda Imperial do czar Nicolau II.

Com direção de Paulo de Moraes, o espetáculo estreou em novembro de 2022, no Rio de Janeiro, e teve uma temporada em São Paulo entre abril e maio deste ano. Em Londrina, compõe a programação do Filo (Festival Internacional de Londrina).

O diretor conta que a ação da “Neva” se passa dentro de um teatro, onde um ator e duas atrizes que iriam ensaiar “O Jardim das Cerejeiras” acabam se abrigando para se proteger do massacre que acontece nas ruas.

Uma das atrizes trancada dentro do teatro é a alemã Olga Knipper (Patrícia Selonk), primeira atriz do famoso Teatro de Arte de Moscou e que foi casada com o dramaturgo russo Anton Tchekhov. Sentindo-se incapaz de representar, depois da morte do marido por tuberculose, e na tentativa de seguir vivendo – enquanto lá fora a cidade desaba –, Olga instiga Masha (Isabel Pacheco) e Aleko (Felipe Bustamante) a encenarem repetidamente junto com ela a morte de Tchekhov.

O diretor destaca que o massacre ocorrido na Rússia, com a neve ficando vermelha em contato com o sangue das vítimas, foi o ponto de partida para o dramaturgo refletir sobre o Chile da década de 1970, sendo que isso também pode ser aplicado aos “tempos obscuros” vivenciados pelo Brasil nos últimos anos.

Patrícia Selonk e Isabel Pacheco em cena:
Patrícia Selonk e Isabel Pacheco em cena: | Foto: Mauro Kury/ Divulgação/ FILO 2023

CONEXÃO COM O PRESENTE

Moraes acredita que o espetáculo é importante para refletir sobre o presente sem necessariamente precisar ser literal. “Para mim, essa literalidade impede uma fruição mais abrangente de qualquer obra. Eu acredito que quando a gente consegue levar o público a fazer associações, o poder do teatro se estabelece de verdade”, disse o diretor à FOLHA, resposta também enviada ao site Farofafá, em entrevista publicada em 27 de abril.

É justamente por isso que, no ponto de vista do diretor, a morte de Tchekhov ao longo do espetáculo pode ser vista como “a morte da potência da poesia, da potência da arte”, algo que “tentaram tanto fazer a gente acreditar nos últimos anos”.

A preocupação política de Calderón encontra eco na direção de Moraes, já que a linguagem poética e o humor ácido são duas características que compõem a obra.

“A partir de acontecimentos surpreendentes, no meio de muitas tosses e promessas vagas de amor, ele levanta perguntas muito provocativas. Perguntar bem, perguntar mais e melhor, esse é o teatro que me interessa”, afirma o diretor em um texto publicado no site do Armazém Companhia de Teatro. “O teatro é uma arte eminentemente política. Não acredito em um teatro que não busque a transformação.”

Figura marcante na cena cultural de Londrina, Moraes diz que é uma alegria voltar a participar do Filo. “O Armazém é uma companhia que começou em Londrina. Nossas raízes estão aí”, completa.

O OLHAR DO DIRETOR

O diretor Paulo de Moraes dá sua opinião sobre o espetáculo ‘Neva’

Paulo de Moraes: " “O que mais me aproximou de Neva foi uma questão proposta na peça: pra que serve o teatro?"
Paulo de Moraes: " “O que mais me aproximou de Neva foi uma questão proposta na peça: pra que serve o teatro?" | Foto: Divulgação

“O que mais me aproximou de Neva - nesse retorno do teatro, depois desses anos de pandemia - foi uma questão proposta na peça: pra que serve o teatro? Tantas vezes eu me perguntei sobre a irrelevância do teatro e da arte durante os últimos anos. Porque nós artistas fomos bombardeados por todos os lados, não foi só a pandemia. Os artistas não foram só deixados de lado por falta de uma política cultural no país, mas foram achincalhados nas redes sociais, humilhados e ofendidos. A questão que se levanta durante a peça – para que serve o teatro? – é antes de tudo dolorida, não é uma questão simples e não pede uma resposta simplista. Eu quis ir de encontro a essa questão. Queria tentar responder isso pra mim mesmo”.

SERVIÇO

FILO 2023

Neva - Armazém Companhia de Teatro

Local: Cine Teatro Ouro Verde (Rua Maranhão, 85)

Datas: terça (20) e quarta-feira (21), às 20h30

Ingressos: R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia-entrada) no site do Filo ou na plataforma Sympla

Patrocínio: Prefeitura de Londrina / Secretaria Municipal da Cultura / Programa Municipal de Incentivo à Cultura (Promic)

Apoio: Universidade Estadual de Londrina – Casa de Cultura, Espaço Villa Rica, Fecomércio/Sesc-PR, Kery Grill, Rádio UEL FM, EJ Rosa Amarela, Folha de Londrina, Laboratório de Cenografia e Cenotécnica, Sanepar/Governo do Estado do Paraná, Canto do Marl e Vila Triolé Cultural. Realização: Associação dos Profissionais de Arte de Londrina.