Uma das virtudes do bom documentarista é criar uma eficaz construção de personagem, que gere um argumento atraente e crível. Portanto, o autor deve mostrar claramente sua posição em relação à realidade que retrata; isso permitirá que o espectador veja toda a extensão do que é narrado e crie sua própria interpretação crítica.

Até hoje, teóricos, diretores de ficção, documentaristas, críticos de cinema, acadêmicos e estudantes consideram controverso o status do documentário. Realidade ou verdade? Ficção, mentira ou interpretação? Pessoas ou personagens ? Essas considerações servem como preâmbulo para uma abordagem de “Doleira: A História de Nelma Kodama”, longa-metragem de João Wainer recém-lançado pelo streaming.

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Logo de início, para muitos o estranhamento. Nelma Kodama? Mas quem é essa mulher? Começando desde logo: ela é uma empresária brasileira que se diz milionária, detentora de muitas manchetes da mídia nas décadas mais recentes do País asfixiado (como sempre) pela corrupção. Uma delas, hoje já não tão chocante nem bizarra assim, dava conta que uma mulher, uma empresária de São Paulo chamada Nelma Kodama, foi flagrada e presa embarcando para a Europa com 200 mil euros escondidos na calcinha no Aeroporto de Guarulhos.

Assista ao trailer de "“Doleira: A História de Nelma Kodama”:

Vamos ajustando as coisas. Até pouco tempo atrás, a televisão americana produzia o programa “MTV Cribs”. O intuito do reality show (?) era visitar e mostrar casas e mansões de celebridades – músicos, atores, esportistas. Ao todo, cerca de 100 episódios foram ao ar, entre 2000 e 2017. Narcisistas de carteirinha, pessoas do tipo adoram se expor e expor suas vilas multimilionárias. E nunca faltaram, para alegria dos tablóides televisivos sensacionalistas. Nelma Kodama é uma delas. Dentista brasileira nascida em Lins, interior de São Paulo, de família abastada, decidiu em pouco tempo: jamais exerceria a profissão. E então montou um império de práticas de lavagem de dinheiro. Perdeu milhões, ganhou milhões, como diz ela.

Vaidosa, no documentário ela se expõe sem qualquer resquício de recato e deixa claro que sua decisão de mudar de planos profissionais foi a mais acertada. Mostra com orgulho o mobiliário italiano de seu apê de luxo; fala de seus dólares, sobre política, de como lavou um mar de dinheiro, sobre os homens que teve, na intimidade, na profissão ou nas duas ao mesmo tempo. Mas fala, claro, sem qualquer pudor, de sua própria personalidade.

UM EGO DESCOMUNAL

Para si mesma, ela se considera uma artista, nada menos que uma regente de orquestra. Maquiada, perfumada e envolta em roupas de grifes famosas, este ego descomunal é grandiloquente como uma atriz que quer (e vai) proporcionar ao público uma performance inesquecível. Mesmo que sua narrativa vá perdendo ímpeto de saga hollywoodiana, ela nunca deixa por menos a respeito de sua persona fantástica, e vai costurando sua própria engenhosidade, aí incluídos seus instintos empreendedores. O documentário de João Wainer dá rédea solta a sua personagem, que domina o cenário com criminosa (desculpem, mas...) desenvoltura.

Mas não se esqueçam : estamos falando de uma mulher que usou crianças como contrabandistas carregando dinheiro sujo sobre a Ponte da Amizade, dinheiro que através da sua “lavanderia” facilitou inumeras atividades criminosas que criaram vítimas muito reais. Como a floresta tropical brasileira, onde noventa e oito por cento da exploração madeireira é feita ilegalmente, o que só é possível através de esquemas de lavagem de dinheiro proporcionada por Nelma.

Além da própria Nelma, amigos, inimigos (nada convictos), jornalistas, advogados e ex-funcionários, tanto apoiadores quanto oponentes da lavagem de dinheiro, também têm voz no filme. Um dos entrevistados a chama, brincando, de “Satanás de saia”, mas ninguém a envergonha impiedosamente. Todos parecem cativados pelo charme, pelo glamour autoimposto.

Nelma Kodama: a própria doleira tem voz no filme contando sua história com um glamour autoimposto
Nelma Kodama: a própria doleira tem voz no filme contando sua história com um glamour autoimposto | Foto: Netflix/ Divulgação

COLARINHO BRANCO

“Doleira: A História de Nelma Kodama” apresenta vários palestrantes explicando detalhadamente que crimes de colarinho branco não são completamente limpos, mas Nelma não aceita o argumentro. Ela se vê como uma motorista de táxi, que simplesmente leva os vendedores até os clientes. E uma motoprista que também cobrou delicadamente porcentagens duplas por ela.

Lá pelo minuto 32 dos 94 que dura o documentário, Londrina é cidade citada, mas para não sentir qualquer orgulho. Pela presença do doleiro Alberto Yussef, namorado-paixão de Nelma; mais à frente pela escândalo das famosas contas CC5 do Banestado e, ainda, logo ali pela entrada em cena, não gloriosa, do ex-deputado José Janene , já falecido, e um dos pivôs do escandalo do “Mensalão”. O documentário termina com uma série de acusações contra os principais sistemas financeiros e a estrutura da economia global, que se baseia em grande parte na corrupção e no dinheiro negro.

Depois de assistir a este “Doleira”, uma coisa fica clara: Nelma e corrupção sempre andaram de mãos dadas. E a tornozeleira idem.Testemunhamos sua vida glamourosa e chamativa, mas agora, encerrado o filme, ninguém, tem qualquer dúvida de onde ela tirou dinheiro e que fim deu a ele.

A 'GRETA GARBO' DA LAVA JATO

O dia: segunda-feira, 17 de março. O ano: 2014. Para a maioria dos jornalistas que cobria o noticiário policial de Curitiba, parecia ser uma operação da Polícia Federal para prender doleiros envolvidos com lavagem de dinheiro.

Para nós, da sucursal da Folha de Londrina em Curitiba, a operação tinha um "molho" a mais. Um dos detidos era o doleiro Alberto Youssef, que mantinha estreitos laços com Londrina e era velho conhecido do noticiário político/policial por conta do seu envolvimento no Escândalo do Banestado, lá pelos idos 1990.

Os 10 anos que se passaram desde aquele 17 de março de 2014 mostraram que a Lava Jato foi muito mais que uma operação para prender doleiros, como tem se falado.

Mas vamos nos ater aos doleiros, especificamente à primeira leva de presos da Lava Jato, que revelou ao Brasil uma figura "sui generis", a doleira Nelma Kodama, icônica personagem do maior escândalo de corrupção que estremeceu o Brasil e que acaba de ganhar um documentário na Netflix. "Doleira: A História de Nelma Kodama".

Algumas pessoas devem estar se perguntando se Kodama merecia um documentário. Mas para quem era repórter em Curitiba, naquele fatídico ano de 2014, a questão é outra: por que demorou tanto para se lançar o filme?

Kodama gostava de glamourizar sua vida pessoal e a atividade ilegal que exercia
Kodama gostava de glamourizar sua vida pessoal e a atividade ilegal que exercia | Foto: Netflix/ Divulgação

É natural que no marco dos 10 anos da Lava Jato e o crescente interesse do público pelo gênero "true crime" resgatem as histórias da primeira mulher presa pela Polícia Federal na Lava Jato. Ela foi detida no Aeroporto de Guarulhos (SP), na véspera da operação explodir, quando tentava fugir do Brasil para a Itália com 200 mil euros escondidos na calcinha.

Kodama gostava de glamourizar sua vida pessoal e a atividade ilegal que exercia, tanto que para se comunicar com seus comparsas usava codinomes de duas divas do cinema, Greta Garbo ("A Dama das Camélias") e Anita Ekberg ("A Doce Vida"). Ela também gostava de ser chamada de "A Dama do Mercado".

Os depoimentos que Kodama ia dando à justiça e sua ficha corrida revelavam um enredo regado a muito dinheiro, sexo, sedução, luxo, joias, obras de arte e um até um Porsche Cayman. Lembrando que a primeira leva de quadros de pintores famosos apreendidos pela Lava Jato e levados para o Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, tinha 16 peças da doleira.

Para a surpresa dos jornalistas que acompanhavam o desembarque dos itens na garagem do museu, haviam Di Cavalcanti, Cícero Dias e até um Renoir que se revelou depois uma cópia falsificada da tela "Duas Irmãs", de 1881, cujo original estava em um museu dos Estados Unidos.

A falsificação de um Renoir deu o tom pitoresco da cobertura, afinal, a fraude parecia encaixar como uma luva no enredo da mulher que atuou como doleira na 25 de Março e, em uma das sessões da CPI da Petrobras, em Curitiba, quando questionada se ela tinha um relacionamento amoroso com Alberto Youssef, Kodama cantou "Amada Amante", de Roberto Carlos, ganhando inclusive um coro de entusiasmados parlamentares. É puro suco de Brasil. (Adriana De Cunto/ Chefe de Redação)