Doar meu acervo é uma manifestação de liberdade, diz Paulo Mendes da Rocha
PUBLICAÇÃO
terça-feira, 15 de setembro de 2020
BRUNO MOLINERO
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Liberdade. É com essa palavra que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha resume a sua última e conturbada semana.
Antes de mais nada, gostaria que vissem a doação que fiz como uma manifestação da liberdade que tenho de fazer o que eu quiser, diz o arquiteto de 91 anos ao receber o repórter em seu escritório, no centro paulistano.
Mesmo que as janelas estivessem todas abertas, a onda de calor que faz os termômetros da cidade ultrapassarem os 30 graus obriga o vencedor do Pritzker, principal prêmio mundial da arquitetura, a arregaçar as mangas da camisa enquanto comenta as críticas que recebeu nos últimos dias.
O motivo foi a sua decisão de doar todo o seu acervo, com cerca de 9.000 itens, para a Casa da Arquitectura instituição privada portuguesa que fica próxima à cidade do Porto. Os objetos, entre desenhos, maquetes e documentos, foram todos catalogados e já chegaram à Europa, onde estão sendo higienizados, ficarão em quarentena e serão expostos online só a partir do ano que vem e ao vivo em 2022.
Professores, pesquisadores e arquitetos reclamam que a saída do acervo do Brasil pode dificultar pesquisas acadêmicas e seria mais um capítulo de uma certa erosão cultural que o país vive desde o fim do Ministério da Cultura na gestão de Jair Bolsonaro.
A própria Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, onde Mendes da Rocha foi professor por quase 40 anos, disse que soube da decisão com grande pesar. A FAU abriu negociações para abrigar os objetos, mas foi preterida.
Tenho seis filhos. Se, por alguma razão, eu resolver dar um presente para um e não para os outros, serão cinco reclamações, diz Mendes da Rocha, que assina projetos conhecidos no país, como o do Sesc 24 de Maio e o da reforma da Pinacoteca, ambos em São Paulo, por exemplo. Compreendo muito bem quem acha que eu fiz mal. Como disse, eu respeito a liberdade a minha e a de todos.
Muitas dessas objeções também apontam uma possível contradição entre a opção do arquiteto por Portugal e a sua defesa constante de um pensamento anticolonialista. Essas ideias aparecem em muitas falas de Mendes da Rocha, que faz questão de as retomar ao longo da conversa.
A divisão dos países da América Latina é uma fantasia e uma consequência grotesca da política colonial, diz ele em seu escritório, defendendo mais acordos de cooperação e de integração entre as nações do continente.
Nesse sentido, o envio dos itens para a Europa seria uma forma de entregar um importante acervo brasileiro para a sua antiga metrópole. Mendes da Rocha discorda. Portugal não é mais um país que nos coloniza. Ele é um parceiro, principalmente se considerarmos que falamos a mesma língua, defende. Portugal hoje não está de acordo com a sua própria política de colonização do passado.
Nos bastidores e pelos corredores da própria Faculdade de Arquitetura, pesquisadores também apontam um suposto ressentimento do ex-professor como uma das causas para que ele não tenha entregue o seu acervo à universidade.
Mendes da Rocha se tornou docente da FAU em 1961, a convite do arquiteto Vilanova Artigas, que desenhou o próprio prédio da escola. Em 1969, com a publicação do AI-5, ele foi cassado e afastado de suas funções pelo regime militar, retornando à USP em 1980, com a promulgação da Lei da Anistia só que, dessa vez, na função de auxiliar de ensino.
O afastamento e a volta à sala de aula motivaram uma carta de demissão, na qual o professor critica o seu retorno à faculdade no cargo mais baixo da carreira docente. Mendes da Rocha seguiu na FAU e, nos anos seguintes, acabou se tornando livre-docente. Ele se aposentou em 1998.
Quando fala dessa época, o arquiteto troca as frases longas e as explicações contextualizadas por respostas curtas. A história não é feita de gracinhas, diz. Ela é difícil, dolorosa e deve servir de exemplo para que não se repitam desastres tão estúpidos, acrescenta ele, ao se referir à ditadura. Mas nega em seguida qualquer rusga ou ressentimento em relação à USP ou à FAU.
A doação do acervo, porém, não gerou só críticas. Cerca de 250 nomes ligados à arquitetura publicaram nesta segunda uma carta pública em que apoiam o gesto e classificam a opção por Portugal como um esforço para salvaguardar a obra de um dos principais arquitetos brasileiros e uma forma de resistência contra o que chamam de desmonte da cultura no Brasil.
Não queria transformar essa conversa em um debate de política cultural. Tenho a impressão de que qualquer país precisa ter interesse em guardar seus acervos. Caso contrário, ele não tem memória, afirma Mendes da Rocha.
Na Europa, o conjunto composto por 6.300 desenhos, 3.000 fotografias e slides, 300 publicações e maquetes, que correspondem a mais de 320 projetos, serão digitalizados pela Casa da Arquitectura e disponibilizados de graça para pesquisadores e curiosos. Servirão também de matéria-prima para exposições, que podem circular por outro país, afirma a instituição.
Mendes da Rocha diz acreditar que a doação é mais um passo de sua carreira e não o capítulo final. Eu me sinto muito bem. Acho que, tendo nascido, não tenho outra alternativa senão viver, diz. Espero viver para sempre.
Se os olhos para o futuro são os de um projetista, a mirada ao passado e para sua própria obra não conta com tanto encantamento. Não tenho orgulho de nenhum projeto que fiz. Não trabalho para ter orgulho, nunca acho que fiz o melhor. Fiz o melhor que pude.