A quarentena inspira a criação. Essa tem sido a fórmula de autores que trazem ao público produções já conhecidas ou inéditas. Há duas semanas, Christine Vianna, produtora da Vila Cultural Cemitério de Automóveis, gravou um áudio com um texto que ela acabara de escrever e enviou para três poetas: Edra Moraes, Samantha Abreu e Célia Musilli, propondo que elas o continuassem usando a poesia ou a prosa. Isso deu origem ao vídeo “Betoneira”, lançado na última quarta-feira (10), no canal do Cemitério de Automóveis no YouTUbe. Betoneira é uma referência àquilo que junta e mistura tudo, mas em vez de misturar a massa essa betoneira misturou poemas que ganharam uma leitura performática de Christine Vianna.

A técnica de várias pessoas criarem um texto a partir de uma ideia inicial era comum entre os surrealistas que, no início do século 20 , criaram um jogo chamado cadavre exquis (cadáver delicioso), que consistia em subverter o sentido convencional da linguagem com textos compostos a muitas mãos. Tão estranho quanto o nome “cadáver delicioso”, “betoneira” é uma expressão que resume a ideia de criar textos coletivos. O projeto terá continuidade.

Em “Betoneira”, que partiu de um desafio – jogo cada vez mais popular nas redes sociais – o texto flui com cada poeta dando continuidade ao que a outra havia escrito. O vídeo conta com ilustração de Daniele Stegmann, design de Marcos Tavares e edição do músico Duda Victor. Confira os textos que deram origem à composição coletiva e que são lidos de forma unificada na betoneira literária.

Ilustração de Daniele Stegmann
Ilustração de Daniele Stegmann | Foto: Daniele Stegmann/ Divulgação

Não tenho guardado quase segredo algum

Exposta

O sol brilha na minha cara, mas não aquece

nem a memória de dias não tão remotos

traz um bafo que seja de alento

Suspiro

Pensei que a chuva caída outro dia

bem fina

me trouxesse de volta

Alice, Hela, Perséfone, Ísis

queria mesmo, Lâmia,

mas que nada

Veio Calipso e sugeriu pra me esconder um pouco
Em síncope espatifei nossos dias pra ela
(tadinha, socada naquela gruta não sabia da quarentena)

Não ficou. Ainda quis me levar para seus jardins, salões imensos
mas como não tenho paciência para fiar
pude voltar para estradas que não podemos percorrer

e as armadilhas da vida me puseram exilada na cama
e andei confins em meu coração
onde desde muito guardei seu cheiro, seu beijo e olhar
e vieram as quietudes de seus sussurros
e bem mais

(Christine Vianna)

*

seu sorriso equivale a mil sóis

atrito

a arte de procurar a Via Láctea

e encontrar sua cabeleira grisalha

Saturno da minha vida

Vênus, depois estrela cadente

o brilho que escapou há dez mil anos-luz

transparência

seria aquele encontro na feira entre tomates e girassóis?

artesanato itinerante

passeio terrestre como homem e mulher

saltamos tantas vidas numa só vida

foi perigoso

a viagem na nave de ouro sujeita a explosões

e à queda no mar

mediterrâneo

estivemos tão sós quando nos encontramos

nada soubemos da parceria sideral que subiu montanhas

memória

cometa da loucura

fogo fátuo das cinzas da cabeleira de Saturno

o planeta dos anéis em seus cabelos

paixão grave e taciturna

amor que esconde o sol do dia que não foi

verão abortado

a sina das quatro estações

Vivaldi ao piano no fundo de um bar

cenário parcial de seu sorriso

no giro da galáxia

o encantamento eterno

entre os dentes

(Célia Musilli)

*

Mulher que sempre se entrega aos sóis e vias

guardei em nós os segredos do tempo, algo de passagem,

a dimensão exata de mapas do céu tatuados na sua pele,
suas veias me mostrando os caminhos dos impérios,
dos reinos imortais, das cruzadas descobrindo mistérios de mim.
Um bárbaro invadindo meu peito
em busca do que eu não revelo,
expondo costelas e nervos ao calor apaixonado dos encontros.

De todos os planos onde já fui deusa,
de todas as rotas e planetas que já percorri,
seu corpo – o seu corpo, sim –
me toma pelo mistério de uma ilha desconhecida, uma terra sem lei,
uma fenda na terra por onde podemos encarar o fervor do abismo
e saltar sem chegar ao fim da queda, saltar
rumo a outro universo: sem mapas ou satélites,
onde haja apenas sua língua sussurrada entre os dentes
quando à noite inauguramos linhagens.

(Samantha Abreu)

*

Frações do universo no ritmo dos seus quadris

fractais de amor, são sempre o mesmo amor

desejos repetidos e repicados nas partes do teu corpo

da mínima célula até tuas coxas como um código

No avesso de Calipso quanto mais me revelo

mais misteriosa sou ao teu olhar

Há um atrito de palavras, e uma arte na transparência

que ao invés de revelar, oculta

enquanto o universo vira e a via láctea

às vezes é o meu umbigo

palavra ambígua da minha língua que desliza

acentuando tua glande

prepúcio do entardecer

atrito e arte em viver

(Edra Moraes)

Confira o vídeo no canal da Vila Cultural Cemitério de Automóveis