Desafio literário em vídeo
Quatro autoras participam do desafio literário 'Betoneira' misturando palavras e imagens poéticas
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Quatro autoras participam do desafio literário 'Betoneira' misturando palavras e imagens poéticas
Celia Musilli - Grupo Folha
A quarentena inspira a criação. Essa tem sido a fórmula de autores que trazem ao público produções já conhecidas ou inéditas. Há duas semanas, Christine Vianna, produtora da Vila Cultural Cemitério de Automóveis, gravou um áudio com um texto que ela acabara de escrever e enviou para três poetas: Edra Moraes, Samantha Abreu e Célia Musilli, propondo que elas o continuassem usando a poesia ou a prosa. Isso deu origem ao vídeo “Betoneira”, lançado na última quarta-feira (10), no canal do Cemitério de Automóveis no YouTUbe. Betoneira é uma referência àquilo que junta e mistura tudo, mas em vez de misturar a massa essa betoneira misturou poemas que ganharam uma leitura performática de Christine Vianna.
A técnica de várias pessoas criarem um texto a partir de uma ideia inicial era comum entre os surrealistas que, no início do século 20 , criaram um jogo chamado cadavre exquis (cadáver delicioso), que consistia em subverter o sentido convencional da linguagem com textos compostos a muitas mãos. Tão estranho quanto o nome “cadáver delicioso”, “betoneira” é uma expressão que resume a ideia de criar textos coletivos. O projeto terá continuidade.
Em “Betoneira”, que partiu de um desafio – jogo cada vez mais popular nas redes sociais – o texto flui com cada poeta dando continuidade ao que a outra havia escrito. O vídeo conta com ilustração de Daniele Stegmann, design de Marcos Tavares e edição do músico Duda Victor. Confira os textos que deram origem à composição coletiva e que são lidos de forma unificada na betoneira literária.
Não tenho guardado quase segredo algum
Exposta
O sol brilha na minha cara, mas não aquece
nem a memória de dias não tão remotos
traz um bafo que seja de alento
Suspiro
Pensei que a chuva caída outro dia
bem fina
me trouxesse de volta
Alice, Hela, Perséfone, Ísis
queria mesmo, Lâmia,
mas que nada
Veio Calipso e sugeriu pra me esconder um pouco
Em síncope espatifei nossos dias pra ela
(tadinha, socada naquela gruta não sabia da quarentena)
Não ficou. Ainda quis me levar para seus jardins, salões imensos
mas como não tenho paciência para fiar
pude voltar para estradas que não podemos percorrer
e as armadilhas da vida me puseram exilada na cama
e andei confins em meu coração
onde desde muito guardei seu cheiro, seu beijo e olhar
e vieram as quietudes de seus sussurros
e bem mais
(Christine Vianna)
*
seu sorriso equivale a mil sóis
atrito
a arte de procurar a Via Láctea
e encontrar sua cabeleira grisalha
Saturno da minha vida
Vênus, depois estrela cadente
o brilho que escapou há dez mil anos-luz
transparência
seria aquele encontro na feira entre tomates e girassóis?
artesanato itinerante
passeio terrestre como homem e mulher
saltamos tantas vidas numa só vida
foi perigoso
a viagem na nave de ouro sujeita a explosões
e à queda no mar
mediterrâneo
estivemos tão sós quando nos encontramos
nada soubemos da parceria sideral que subiu montanhas
memória
cometa da loucura
fogo fátuo das cinzas da cabeleira de Saturno
o planeta dos anéis em seus cabelos
paixão grave e taciturna
amor que esconde o sol do dia que não foi
verão abortado
a sina das quatro estações
Vivaldi ao piano no fundo de um bar
cenário parcial de seu sorriso
no giro da galáxia
o encantamento eterno
entre os dentes
(Célia Musilli)
*
Mulher que sempre se entrega aos sóis e vias
guardei em nós os segredos do tempo, algo de passagem,
a dimensão exata de mapas do céu tatuados na sua pele,
suas veias me mostrando os caminhos dos impérios,
dos reinos imortais, das cruzadas descobrindo mistérios de mim.
Um bárbaro invadindo meu peito
em busca do que eu não revelo,
expondo costelas e nervos ao calor apaixonado dos encontros.
De todos os planos onde já fui deusa,
de todas as rotas e planetas que já percorri,
seu corpo – o seu corpo, sim –
me toma pelo mistério de uma ilha desconhecida, uma terra sem lei,
uma fenda na terra por onde podemos encarar o fervor do abismo
e saltar sem chegar ao fim da queda, saltar
rumo a outro universo: sem mapas ou satélites,
onde haja apenas sua língua sussurrada entre os dentes
quando à noite inauguramos linhagens.
(Samantha Abreu)
*
Frações do universo no ritmo dos seus quadris
fractais de amor, são sempre o mesmo amor
desejos repetidos e repicados nas partes do teu corpo
da mínima célula até tuas coxas como um código
No avesso de Calipso quanto mais me revelo
mais misteriosa sou ao teu olhar
Há um atrito de palavras, e uma arte na transparência
que ao invés de revelar, oculta
enquanto o universo vira e a via láctea
às vezes é o meu umbigo
palavra ambígua da minha língua que desliza
acentuando tua glande
prepúcio do entardecer
atrito e arte em viver
(Edra Moraes)
Confira o vídeo no canal da Vila Cultural Cemitério de Automóveis