Um bom emprego, um bom apartamento, uma boa família, uma boa igreja, um bom carro, um ótimo grupo de amigos, um bom marido, uma ótima esposa, lindos filhos, um excelente centro de compras, um bom hospital e um belo cemitério. Pessoas normais desejam tudo isso e um pouco mais. Pessoas normais gostam de coisas normais.

Sayaka Murata: no livro "Querida Konbini", a autora transforma a obsessão pela normalidade em algo próximo do horror
Sayaka Murata: no livro "Querida Konbini", a autora transforma a obsessão pela normalidade em algo próximo do horror | Foto: Bungeishunju/Divulgação



Em "Querida Konbini", a escritora japonesa Sayaka Murata transforma esse desejo por normalidade em obsessão, algo próximo do horror: "O padrão do mundo é compulsório e os corpos estranhos são eliminados sem alarde. Os seres humanos fora do padrão acabam sendo retirados."

Lançado pela editora Estação Liberdade, o romance narra a história de Keiko, uma jovem que não sabe se relacionar com a realidade de acordo com os padrões sociais. Com 18 anos de idade arruma um emprego temporário numa konbini (termo japonês para loja de conveniência aberta 24 horas) de Tóquio.
Nas regras rígidas de funcionamento do local, e nas normas para os funcionários, Keiko encontra uma forma de se relacionar com a realidade sem angústia ou sofrimento. Num trabalho de alta rotatividade, ela se sente parte de algo, estável e permanente.

Aos 33 anos de idade Keiko ainda está trabalhando na mesma konbini como temporária. Para ela, trata-se de um ambiente seguro, estável, e não vê nenhuma necessidade de mudar de vida. O problema é que a família e os amigos não encaram as coisas dessa forma e há uma enorme cobrança para que ela arrume um emprego de verdade, marido e filhos. Cobram que ela viva dentro da normalidade que todos vivem.

Para conseguir que parem com a cobrança, Keiko arruma um marido de fachada, um ex-colega de trabalho pirado com um caminhão de desajustes nas costas. Então tudo se torna tranquilo, sua relação com a família e amigos melhora de uma hora para outra. As cobranças ficam para trás e todos respiram aliviados: Keiko se torna uma pessoa normal.

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Ao transformar sua vida para fazer parte da normalidade, Keiko se coloca na beira de um precipício: "Eu estava me aproximando da imagem de ser humano normal que existe na mente de todo mundo". E, um belo dia, desajustada na normalidade, Keiko despenca abismo abaixo.

A narrativa de Sayaka Murata traz a voz da própria personagem numa mistura de ingenuidade, autismo, sátira e humor negro: "Talvez o mundo fosse como a konbini, onde as pessoas vão sendo substituídas por outras, embora o cenário continue sempre o mesmo".

Em "Querida Konbini", a autora transforma uma loja de conveniência 24 horas numa pequena reprodução de uma sociedade, de um país, de uma nação, de um mundo: "A única maneira de permanecer na konbini é se tornar um funcionário. Isso é muito simples: basta vestir o uniforme e agir de acordo com o manual. Se o mundo é igual à pré-história, então é só proceder da mesma forma. Para não ser expulso da aldeia nem ser tratado como um inconveniente, basta vestir o manto de um ser humano padrão e agir de acordo com o que dita esse manual."

Nascida em 1979, Sayaka Murata é uma das principais vozes da literatura japonesa da atualidade agraciada com os principais prêmios literários do Japão. Ganhou, por exemplo, quatro edições do prêmio Yukio Mishima. Durante muitos anos conciliou a atividade de escritora com a de balconista numa loja de conveniência em Tóquio.

Autora de dez livros, seus principais temas apontam para a não conformidade nas relações de gênero, do trabalho e na sexualidade dentro da sociedade japonesa dos dias atuais. Em um de seus contos, por exemplo, intitulado "Um Casamento Limpo", Sayaka Murata narra a jornada de um casal na tentativa de conceber um filho sem fazer sexo.

Imagem ilustrativa da imagem Dentro da caixa do lado de fora
| Foto: Divulgação


SERVIÇO:
"Querida Konbini"
Autora - Sayaka Murata
Editora - Estação Liberdade
Tradução - Rita Kohl
Páginas - 152
Quanto - R$ 39


FRAGMENTO
Eu não tenho nenhuma experiência com sexo, mas também nunca refleti sobre minha sexualidade nem me afligi por isso. Apenas não ligo para o assunto. Mas minhas amigas já concluíram que estava sofrendo e seguiram a conversa partindo dessa premissa. Além disso, mesmo que eu tivesse sofrendo, não necessariamente meu sofrimento se encaixaria em algumas dessas formas claras e preestabelecidas, porém ninguém estava disposto a se aprofundar de fato nessa reflexão. Era como se elas declarassem que preferiam ver as coisas desse jeito, pois assim a situação era mais fácil de compreender.

Daquela vez em que bati no colega com uma pá, quando era criança, aconteceu o mesmo. Os adultos caíram em cima da minha família, convencidos de que havia algum problema na minha casa, apesar de não existir nenhum fato para justificar essa acusação. Queriam de qualquer maneira que admitíssemos que era isso o que acontecia. Afinal, se eu sofresse abusos em casa, isso justificaria de forma simples e clara o ocorrido e todos poderiam ficar tranquilos.

(Fragmento de "Querida Konbini", de Sayaka Murata)