Da literatura para o cinema, a sofisticação de Clarice Lispector
'A Paixão Segundo G. H.', de Luiz Fernando Carvalho, desafia a ideia de "obra infilmável" ao levar às telas um romance cheio de abstrações
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segunda-feira, 15 de abril de 2024
'A Paixão Segundo G. H.', de Luiz Fernando Carvalho, desafia a ideia de "obra infilmável" ao levar às telas um romance cheio de abstrações
Leonardo Sanchez/ Folhapress
SÃO PAULO, SP - Borrões coloridos deixam vazar o rosto sereno porém retorcido de Maria Fernanda Candido, nos primeiros segundos de "A Paixão Segundo G. H.". Ela logo encontra sua voz, dando início a um monólogo que transforma 180 páginas de papel em duas horas de registro digital.
Tido por muitos como um exemplar infilmável do acervo de Clarice Lispector, o livro que serve de base para o filme de Luiz Fernando Carvalho foi publicado há 60 anos, mas encontrou meios para embrenhar-se pelas salas de cinema de hoje ainda muito atual.
São questões essencialmente humanas que guiam a conversa de G. H. com o espectador, afinal. É no que acredita Candido, que gosta da teoria de alguns estudiosos que dizem que o nome da protagonista é abreviatura para "gênero humano".
Atriz e diretor retomam a parceria que fundaram na novela "Esperança", de 2002, e, depois, reforçaram em "Capitu", minissérie que adaptou "Dom Casmurro" para a Globo com um grau de teatralidade que se repete em "A Paixão Segundo G. H.".
Ao tornar tão concreto o drama da protagonista da alta sociedade, desolada após ser deixada pela empregada, Carvalho reforça que não é afeito ao termo infilmável, que parece ser uma constante em sua vida, seja pela natureza das obras literárias que leva às telas ou pela pressão que adaptar cânones como "Dom Casmurro" inevitavelmente impõe.
Seu confronto mais ardente com o termo foi travado há duas décadas, quando muitos tentaram dissuadi-lo de levar às telas "Lavoura Arcaica", o drama de Raduan Nassar sobre um jovem que se rebela contra a família e suas tradições, sem seguir uma ordem cronológica, e que acabou por se tornar um sucesso de público e crítica.
"Os cineastas que me interessam são aqueles que não estavam demarcados por fronteiras rígidas, como Luchino Visconti, que fazia ópera e cinema; Ingmar Bergman, que fazia teatro e cinema. Esse diálogo nunca me incomodou pelo contrário, me seduz muito", diz Carvalho sobre como a influência da literatura, da música e do teatro o ajudam a dirigir, numa serenidade e verborragia semelhantes àquelas que tomam G. H.
Adaptar, também, não é uma palavra tão expressiva no dicionário particular do cineasta, que prefere falar em "aproximação". "Para lidar com esses espinhos da literatura, é preciso uma potência cinematográfica, é preciso criar uma linguagem própria. Da fricção dessas duas coisas surge uma terceira, inominável."
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Cuidadosamente, o diretor tira da bolsa um caderno de anotações, que logo se revela um portal para o mundo que visionou para o livro de Clarice Lispector. Linhas e mais linhas de comentários se avolumam nas páginas, entrecortadas por tintas coloridas de onde se pode notar a presença de uma barata, ou de uma mulher, ou de qualquer outro objeto abstrato.
Não havia exatamente um roteiro para "A Paixão Segundo G. H.". Assim como fez em "Capitu", o cineasta incorporou o texto à obra cinematográfica, deixando que Maria Fernanda Candido se apossasse do drama escrito por Clarice Lispector.
Ela chegava ao set sem saber o que gravaria, e o caderninho servia como um guia fiel. O processo foi documentado e estará no livro "Diário de um Filme", da editora Rocco, em que a roteirista Melina Dalboni relata a experiência.
Para fortalecer os laços da personagem principal com o espectador que, quase voyeurista, a observa sozinha por duas horas, Carvalho tomou a câmera em suas próprias mãos, aproximando as lentes do rosto de sua musa com exagero e dramaticidade.
UMA BARATA COMO ATRIZ
Mas Candido não está exatamente sozinha em cena. Ela encontra sua coadjuvante numa barata, com quem conversa, chora e grita. A câmera registra, por exemplo, o momento em que um fluido branco vaza do diminuto e repulsivo corpo insectoide.
A imagem dá aos embates verborrágicos um interessante contraste - de um lado, o animal que inspira nojo, de outro, a beleza plástica de figurinos, cenários e de Maria Fernanda Candido.
Foram várias as atrizes-baratas escaladas para o longa, sob consultoria do Instituto Butantã, que designou espécies específicas para cada cena, conforme as demandas do diretor. Se o animal precisava mexer vigorosamente as antenas, usavam uma barata; se precisava parecer morto, recorriam a outra.
Assim, a história de G. H. sai do tom otimista do princípio e se abre para questionamentos profundos e trágicos sobre a vida, o fim, os amores, os privilégios, as classes, os gêneros, a beleza e muitos outros temas que, numa primeira leitura - ou sessão - podem não ficar todos claros.
"A lógica do mundo hoje é tudo ser muito descartável, para consumo imediato. Essa é uma obra que se prolonga, que fica com você ao sair do cinema. É uma obra que abre, ela não fecha", afirma Candido. Ela ainda lança "Vermelho Monet" no mês que vem e diz que a obra literária espanta primeiro por ter sido publicada em plena ditadura militar e, segundo, por permanecer inequivocamente atual.
Em raros momentos surge outra coadjuvante, Janair, que toma forma física após ser uma mera menção no livro de Clarice Lispector. Carvalho quis destacar a face social da obra, que à época, acredita, pode não ter sido percebida como tão urgente.
Estreando como atriz, Samira Nancassa dá corpo à empregada que se demite, deixando para G. H. a tarefa de limpar o próprio apartamento - quando, enfim, encontra a barata que tanto lhe causa repulsa. O diretor conheceu a guineense nas páginas da Folha de S. Paulo, ao receber seu jornal pela manhã e ler uma reportagem sobre sua vitória no concurso Miss África de 2018.
A urgência de seus temas, tratados com intensidade palavrosa, porém, não mina o filme do apelo e do rebuscamento visual. Carvalho, afinal, é dono de uma obra em que a estética por vezes parece engolir o próprio filme ou série, como é o caso de Baz Luhrmann ou Pedro Almodóvar, em exemplos estrangeiros.
Nos três casos, com alguns mais bem-sucedidos que outros, a direção de arte funciona como instrumento narrativo, tão importante quanto qualquer outro elemento para narrar a história e para imprimir sua visão autoral sobre ela. Todos os elementos de um filme são constitutivos da linguagem, defende Carvalho, que apesar da beleza plástica considera o seu cinema uma barata.
É um "objeto imundo", no sentido de ser execrado por uma lógica comercial que cada vez mais domina o fazer cinematográfico, afirma o diretor. "O filmável é esse modelo hegemônico reivindicado pelo mercado", diz, retomando o termo que ronda sua filmografia.
"Tudo o que não se encaixa nessa forma única de traduzir o mundo se torna infilmável, mas para mim as coisas são filmáveis a partir do momento em que elas te afetam. Se te afeta, há algo para ser visualizado."
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