Julie faz um esforço titânico para criar seus dois filhos na distante periferia de Paris, enquanto mantém seu emprego em hotel de luxo no centro da cidade. No momento em que ela consegue uma entrevista para o trabalho que desejava há muito tempo, uma greve geral irrompe, paralisa todos os transportes públicos e coloca em risco o delicado (precário?) equilíbrio que a personagem havia construído. Começa então uma corrida louca contra o tempo, e Julie não pode se dar ao luxo de vacilar. A partir desta trama, o diretor Éric Gravel entrega um filme de tirar o fôlego sobre uma mãe asfixiada pela alienação da roda viva entre o subúrbio e o centro da capital.

“Se você não quer mais limpar a m... dos ricos, não há lugar para você aqui”. Na hotelaria chique parisiense, quando um hóspede vai embora e deixa o quarto em estado lastimável, isto é chamado de “Bobby Sands”, referência a lendário preso do IRA que morreu em prisão irlandesa após greve de fome e de higiene. Mas para Julie, a protagonista do emocionante “Contratempos”, que tem que usar uma mangueira de alta pressão para limpar o banheiro destruído por um famoso cantor pop britânico, este é o menor de seus problemas em uma vida cotidiana que está rapidamente se transformando em pesadelo.

Filme transparece toda a alienação de um cotidiano feito de sacrifícios com o tempo sempre a correr, muito depressa
Filme transparece toda a alienação de um cotidiano feito de sacrifícios com o tempo sempre a correr, muito depressa | Foto: Divulgação

Esta mãe divorciada é apenas uma mulher comum entre muitas outras nos arredores de Paris, fazendo piruetas como trapezista sem rede de segurança entre sua vida profissional e a administração de sua casa (uma vizinha idosa para cuidar do casal de filhos, uma geladeira para abastecer, roupas para passar, crianças que precisam de um pouco de tempo, atenção e amor, a decisão de levar uma vida em um pequeno e distante bairro, etc). Ela sobrevive entre contas, créditos, pensão alimentícia (que nunca aparece) e cheque especial, e é engolida pelo cansativo ritmo pendular de tentar chegar ao trabalho em Paris todos os dias, refém do bom funcionamento do transporte publico.

Este retrato edificante, moderno e realista é pintado pelo cineasta e roteirista Gravel com alto grau de octanagem. Desde antes do amanhecer, quando Julie (Laure Calamy, melhor atriz em 2021 em Veneza e candidata ao César da categoria dia 24 próximo) prepara seus dois filhos pequenos para a escola antes de deixá-los com a babá, correndo para pegar o trem e vendo o sol nascer no horizonte cinza-urbano, até seu regresso à noite, transparece toda a alienação de um cotidiano feito de sacrifícios com o tempo sempre a correr, muito depressa.

Mas para esta mulher, ex-pesquisadora de marketing (que teve de se requalificar como doméstica num hotel de luxo, em jornadas de grande pressão), a semana que se inicia vai ser ainda mais complicada porque uma greve generalizada ameaça paralisar os transportes públicos, bem como ela pode brigar por outro emprego no perfil de suas melhores habilidades. Assim se abre um redemoinho infernal de trens cancelados, jornadas em carros compartilhados, interrupções, violações das regras de trabalho, caronas, economia, disfarces na aparência, pequenas catástrofes repentinas e soluções improvisadas — um vórtice que se agrava a cada dia que passa, a ponto de quase tudo se tornar questão de vida ou morte…

A narrativa tira o máximo partido da excepcional energia de sua atriz principal (que a câmera nunca abandona em suas andanças e tribulações). Éric Gravel (melhor diretor em Veneza 2021) realizou seu filme com sofreguidão, um drama humano que busca e encontra empatia, recriando com precisão a realidade contemporânea e ecoando questões sociais atuais – o rádio atualiza regularmente os eventos em andamento na França: greves, protestos, violência, etc. Menção obrigatória ainda à trilha musical de Irène Drésel, também candidata ao César.

* Confira a programação de cinema no site da FOLHA

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