Em uma tarde de fevereiro no Calçadão de Londrina, uma pessoa cola, de dentro para fora da porta de vidro do Cine Teatro Ouro Verde, um papel indicando a sessão do filme francês “Contratempos”. Às 16h e às 19h30, diz o aviso que marca a retomada das sessões em 2023 da sala.

De longe se vê a fachada nada modesta do espaço inaugurado em 1952, cujo nome faz referência ao grão de café que projetou a sociedade londrinense na metade do século passado. O papel com a programação é colado, a porta é aberta e aos poucos algumas pessoas entram no prédio septuagenário.

Poucos metros dali, na rua Piauí, outro cinema histórico voltou à atividade. O Espaço Villa Rica, agora repaginado e com oferta de outros serviços, se propõe a manter a aura do antigo Cine Vila Rica, que marcou época e deixou saudades quando fechou as portas, em 2001.

Imagem ilustrativa da imagem Com público pequeno e fiel, cinemas de ruas resistem em Londrina
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Londrina mantém um movimento na contramão da maioria das cidades, que observaram, um a um, seus cinemas de rua fecharem. Os prédios, com localização privilegiada, aos poucos passaram a abrigar igrejas, bancos, lojas etc. Hoje, ir ao cinema é - praticamente - sinônimo de ir ao shopping center.

Marden Machado, escritor e crítico de cinema, cita uma série de fatores que contribuíram para o apagamento desses espaços: especulação imobiliária, problemas de administração e, inevitavelmente, a migração para os centros comerciais, fenômeno ocorrido há cerca de 35 anos no Brasil.

“O Brasil, até o início da década de 1970, tinha até uma quantidade boa de salas de cinema, e eram todas de rua. Esse formato privilegiava a região central da cidade e centros maiores. Tinham também cinemas de rua nos principais bairros”, conta Machado. “O filme estreava nos cinemas do centro, que eram mais maiores, mais luxuosos. E depois iam para o cinema de bairro, com ingresso mais barato, que não tinha o mesmo conforto. Mas aí veio uma série de questões que fizeram com que boa parte dessas salas fechassem.”

Mas, antes desse movimento que marcou a decadência das salas de rua, Londrina desenvolveu uma relação estreita com esses locais. O livro “Fincando estacas! A história de Londrina em textos e imagens”, de Paulo César Boni, relembra os primeiros passos cinematográficos da cidade - que vieram antes mesmo da criação do município em 1934.

O Cine Teatro Nacional, que è época exibia filmes mudos, data de 1933. O Cine Londrina, o segundo da cidade, surge em 1934 e nos próximos 30 anos é renomeado para Cine Avenida e Cine Brasília. O terceiro foi o Cine São José, em 1938. Outros nomes que marcaram a história da cidade foram o Cine Municipal, Cine Jóia, Cinerama e Cine Augustus.

O cineasta Rodrigo Grota é um dos personagens da cinematografia londrinense. Na cidade desde 1997, frequentou o Ouro Verde e o Vila Rica. No seu ponto de vista, a existência de cinemas de rua é fundamental.

“São espaços culturais que dialogam com uma camada da sociedade que não é só a que tem acesso ao shopping, ou ao preço do ingresso, que está muito caro”, afirma. “Também, recupera um pouco da memória afetiva da cidade.”

Falando em memória afetiva, Grota exibiu seu primeiro curta-metragem, o documentário “Londrina em Três Movimentos”, no Ouro Verde em 2004. Depois, em 2010, projetou o curta-metragem “Haruo Ohara” no mesmo local; a última experiência foi a exibição do documentário “Infinito Interior”, em 2022.

A última sessão foi especial porque homenageou o eletricista Ricardo Costa Barros, o Carioca, que faleceu em agosto. “Meu último set foi em abril. 29 de setembro era aniversário dele, fizemos uma sessão em homenagem a ele e ao Ouro Verde [que completou 70 anos em 2022]. A filha dele fez um espetáculo de dança e passamos um curta documentário só sobre o Carioca”, lembra Grota.

Da memória, o afeto

O jornalista Widson Schwartz puxa de memória o nome de cada um dos cinemas de rua de Londrina. Aos 82 anos, lembra de exibições marcantes, como dos filmes Indiana Jones, estrelados por um jovem Harrison Ford.

Descontente com o streaming e com as projeções atuais, Widson fala da qualidade das salas que a cidade já teve. Cine Augustus e Vila Rica eram sinônimo de boa imagem e som. “Hoje a gente vê no canal do streaming, a gente vê a limitação, tendo na cabeça o que era a projeção do Vila Rica. Aquela abertura do Indiana Jones, aquele musical”, diz.

Widson é enfático ao dizer que o cinema é inerente ao nascimento de Londrina. Não à toa, tão logo as terras do Norte do Paraná começaram a ser ocupadas, as primeiras projeções começaram a rodar. “Era uma população muito heterogênea, cosmopolita. Realmente o cinema foi inerente ao crescimento [de Londrina]. Desse hall, você vê que evoluiu junto com a cidade, sempre para melhor”, acredita.

Hoje, já sabendo do funcionamento das duas salas de rua, o jornalista diz que precisa conhecer o novo Vila Rica. Em 2022, quase assistiu ao filme Top Gun: Maverick, mas um problema de saúde acabou adiando o reencontro.

“Não sei como está a projeção, porque os outros cinemas aí, em grande partes das salas, embora a projeção seja digital, deixa a desejar. Imagem escura, som alto. O Vila Rica tinha um som perfeito”, pontua.

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Muitas poltronas, espaços vazios

Entre o público que frequenta o Ouro Verde, a tônica é sempre a mesma: uma programação que foge do chamado “circuitão”. Filmografias europeias, asiáticas e africanas atraem os londrinenses que buscam experiências diferentes.

A professora aposentada Maria Angélica de Oliveira Camargo Brunetto, 62, frequenta o cinema há pelo menos 40 anos, quando mudou para Londrina. Passou por peças de teatro, festivais de dança, e agora busca contemplar a telona.

“É uma boa opção, principalmente pela programação diferenciada. É muito interessante essa ideia de manter os cinema de rua ativos”, diz.

Ela lembra que assistiu ao filme “Entre Rosas”. “Eu estava sozinha [na sessão] e fiquei muito feliz que mesmo assim o filme passou. Achei muito lindo, me marcou bastante”.

Outro frequentador do cinema do calçadão é o professor Helvio Kenji Miyazawa, 63. Enquanto estava ativo, Helvio acompanhava as sessões do antigo Cine Com-Tour, cujas atividades migraram para o Ouro Verde.

“É outro cinema, é mais alternativo, não fica no circuito comercial normal. Tem umas coisas que você não vê em outros cinemas e vê aqui. Eu gosto de tudo, mas a gente precisa de outras coisas também”, diz o professor, ressaltando que se interessa pela filmografia europeia, que apresenta problemas do dia a dia. “Para mim, aqui é o lugar. Eu venho sempre”.

Em comum com Helvio e Maria Angélica, Aloísio Cavalcante, 41, e Leila Vilhena, 43, têm, além do ingresso para assistir “Contratempos”, a paixão por um espaço alternativo. “Eu acho que é a programação [o que mais a atrai]. Porque tem uns filmes que só passam aqui, os outros são muito blockbusters. Foge do circuito comercial”, diz Leila.

Aloísio lembra que assistiu, no ano passado, o documentário “Ennio, O Maestro”, que conta a história do compositor, arranjador e maestro italiano Ennio Morricone. “Foi fantástico”, diz. Para ele, além da atração pelo espaço cultural histórico, há um charme em frequentar o Centro de Londrina.

“Eu acho que [o cinema de rua] é uma das poucas coisas que acontecem no Centro da Cidade, à noite, e é um lugar muito legal, as vias não passam carros. Tinha tudo para ser uma região mais noturna, mais boêmia. O pouquinho que tem é o Ouro Verde e a gente aproveita”, completa.

Apesar de manter um público fiel, que compartilha o interesse por filmes que fogem do enlatado norte-americano, o Ouro Verde ainda tem uma taxa de ocupação pequena. Depende muito do longa-metragem exibido, do dia da sessão, da previsão do tempo e de outros fatores.

Um novo Villa Rica

A inauguração do Espaço Villa Rica ocorreu em 2022, após ficar 21 anos fechado. Remodelado e com uma proposta cultural mais ampla, o local resgata o tradicional Cine Vila Rica e se coloca - também - como um dos cinemas de rua de Londrina.

Rodrigo Fagundes, gestor do Vila Rica, explica que a ideia da revitalização foi manter o espaço, que tem importância cultural para a cidade. “Quem conheceu, gosta muito do espaço, tem um carinho muito grande, foi um point da cidade nos anos 1980, 1990 até o começo da década de 2000. A ideia nossa foi lembrar disso, para não se perder. Eu acho que, em Londrina, a gente perde um pouco da nossa história, até por ser uma cidade jovem”, diz.

Imagem ilustrativa da imagem Com público pequeno e fiel, cinemas de ruas resistem em Londrina
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A reforma buscou manter elementos históricos, como o corrimão principal, que sofreu algumas alterações. Dentro da sala, os entalhes de madeiras foram restaurados. E os letreiros e outras peças estão em processo de serem revitalizados.

A maior parte do público que frequentou o Villa Rica em 2022 já conhecia a história do antigo cinema. “É gostoso você voltar, ver ele restaurado, em funcionamento novamente”, diz Rodrigo, pontuando que a programação dialogou com isso. “Top Gun: Maverick” e “Jurassic World: Domínio”, além de clássicos relançados, tiveram boa ocupação.

Além disso, o intuito é trazer uma programação com outras atividades. Rodrigo cita o caso do longa “Elvis”, que teve também um show com um cover do cantor. “Marte Um”, que só foi exibido no Vila Rica, em Londrina, teve uma palestra com o autor da trilha sonora.

Para 2023, a ideia do gestor é manter os eventos culturais, que tiveram um bom feedback do público, como shows, debates com pessoas envolvidas com o audiovisual e peças teatrais. “A nossa média [de ocupação] tende a ser mais baixa, dependendo do filme, e mais alta, quando é um evento especial”, diz Rodrigo. “A nossa ideia não é encher a casa propriamente dita, mas ter uma experiência confortável.”

Segundo o gestor, Londrina possui muitos roteiros de cinema alternativo, mas que dois aspectos poderiam ser melhorados: a comunicação, já que muitas pessoas não ficam sabendo das exibições, e a informação sobre a mídia. “Formação de plateia e levar cultura”, completa.

Ouro Verde, 71 anos

O Cine Teatro Ouro Verde é, sem dúvidas, um dos principais equipamentos culturais de Londrina. Criado em 1952, ainda como Cine Ouro Verde, atravessou gerações e marcou o cinema local até ser adquirido pela Universidade Estadual de Londrina, em 1978. Desde então, abriga o Filo (Festival Internacional de Teatro), o Festival de Música de Londrina e outros eventos culturais. Em 1999, foi tombado.

O local passou por reformas em 2002 e voltou à ativa em 2003, apenas como teatro. Nove anos depois, em 2012, um curto-circuito causou um incêndio que afetou boa parte da estrutura. Foram mais cinco anos até sua reinauguração em 2017.

A retomada do Ouro Verde como cinema regular se deu apenas em 2022, após um hiato de 20 anos. As exibições ocorrem às segundas, terças e quartas-feiras.

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Nesse período, a UEL manteve a programação cinematográfica com o Cine Com-Tour entre 2005 e 2020. O chefe da divisão de cinema e vídeo da Casa da Cultura, Carlos Eduardo Lourenço Jorge, explica que as atividades do Com-Tour foram encerradas durante a pandemia da Covid-19 e, dois anos mais tarde, retomadas no Ouro Verde.

“Ficamos de novo homeless, mas aí não tínhamos mesmo para onde ir. Voltamos para cá, que é nosso lugar por direito. Isso aqui é nosso, da UEL”, explica Carlos Eduardo. “Tivemos que fazer um ajuste entre todas as divisões: o cinema e vídeo, as artes cênicas e as artes musicais. Nós dividimos o latifúndio, e voltamos a exibir, depois desse tempo parado por causa da pandemia, num regime extremamente bizarro. Ou seja, nós exibimos hoje somente às segundas, terças e quartas.”

No Ouro Verde, a cinematografia “do resto do mundo”, ou seja, que foge das produções hollywoodianas, é privilegiada. “O cinema americano nos interessa na medida em que ele seja interessante como alternatividade”, citando exibições de produções da Europa, Ásia, Oceania e África como prioridade. “Sempre estamos de olho nesses lançamentos que as distribuidoras alternativas entregam para as salas das capitais.”

O diretor lembra que já “segurou nas costas” o Ouro Verde com 1.200 lugares, tendo uma ocupação baixa - dez ou vinte pessoas. Hoje a sala possui cerca de 700 lugares. Mas a experiência do Com-Tour contribuiu, pois houve sessões com 400 pessoas em alguns filmes. “Para nós era um regojizo”, brinca.

Com a volta para a sala do Centro de Londrina, a equipe está novamente “nadando contra a mesma corrente”, segundo Carlos Eduardo. Há filmes que dão mais público, outros menos, e houve uma migração de quem acompanhava o Com-Tour. “A gente está pela primeira vez no Centro, com uma sala diferente e menor. As pessoas estão vindo aos poucos. Demora, mas eu não tenho pressa”, ressalta.

Do cinema para a calçada

Para Marden Machado, não há discussão: a experiência cinematográfica em uma sala de rua é completamente diferente. O crítico, que também é curador do Cine Passeio, único cinema de rua de Curitiba, afirma que há uma experiência mais coletiva.

“Boa parte das salas de rua tem um espaço de convivência. E uma coisa que eu percebo, e não só em Curitiba, é que as pessoas conversam sobre o filme antes e depois. A pessoa chega para pegar o ingresso, aguarda o início da sessão e é natural surgir uma conversa. E quando o filme acaba, as pessoas discutem, trocam suas impressões, e isso não ocorre no shopping”, acredita Machado.

No seu ponto de vista, talvez a principal contribuição dos cinemas de rua seja justamente sua programação única. “Cinematografia fora do ‘circuitão’. Filmes mais alternativos, ou com uma expressão que eu detesto: ‘filme de arte’”, completa.

O cineasta Rodrigo Grota acredita que esses espaços precisam oferecer uma programação diferenciada, apostando em ações antes ou depois do filme. Ele cita também a experiência com “Marte Um”, no Villa Rica.

“Eu levei a ideia, porque o filme não viria para Londrina, e o Villa Rica topou. Fizemos uma pré-estréia e conseguimos umas 400 pessoas pagando. Teve palestra com o autor da trilha depois. Aquilo foi um grande exemplo de uma ação bem sucedida de promoção do cinema brasileiro e de atrair o público”, lembra.

Carlos Eduardo pontua que o cinema de rua deveria atender a um público heterogêneo. Como a pessoa que está saindo do trabalho e nota que uma sessão está para começar; ou quem está em um momento de ócio. “Mas a oferta não é popular, a matéria-prima que oferecemos não tem apelo de blockbuster. Eu até brinco: a ação dos nossos filmes é uma ação interior”, afirma o diretor, que diz não saber exatamente qual o público das salas de rua. “Não sei exatamente definir. É um público pequeno.”

SERVIÇO

O Cine Teatro Ouro Verde está localizado na rua Maranhão, 85, no Centro de Londrina. As sessões ocorreram nas segundas, terças e quartas-feiras, sempre às 16h e 19h30. O ingresso custa R$ 10 (meia-entrada) e R$ 20 (inteira). Já o Espaço Villa Rica está na rua Piauí, 211, também no Centro da cidade. A programação do Villa Rica pode ser acompanhada pelas redes sociais do espaço (@espacovillarica).