O corpo de Nitis Jacon de Araújo Moreira foi velado durante a quarta-feira (20) no Cemitério Parque em Arapongas (Região Metropolitana de Londrina). Às 10h o velório foi aberto ao público e as pessoas começaram a chegar para a despedida.

Criadora do FILO (Festival Internacional de Londrina), atriz, médica, professora e ex-vice-reitora da UEL (Universidade Estadual de Londrina), Nitis Jacon tinha 88 anos e era viúva do ex-prefeito de Arapongas Abelardo de Araújo Moreira. Ela deixa três filhos, Orson, Fernando e Gisele, além de netos e bisnetos.

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A filha, a antropóloga Gisele Jacon de Araújo Moreira, conta que há alguns anos a mãe vinha sofrendo os efeitos do Alzheimer. Nem sempre reconhecia as pessoas. Mas viveu cercada dos animais de estimação que tanto amava, cachorros e gatos, em sua casa.

A filha de Nitis Jacon, a antropóloga Gisele Jacon de Araújo Moreira, em frente ao memorial temporário criado para o  velório, com fotos e lembranças da mãe
A filha de Nitis Jacon, a antropóloga Gisele Jacon de Araújo Moreira, em frente ao memorial temporário criado para o velório, com fotos e lembranças da mãe | Foto: Larissa Ayumi Sato

Gisele se recorda da Nitis mãe. “Eu me lembro muito quando menina que ela era muito alegre, era divertida, mas também uma espanholinha brava, dessas que saem dando ordens. Chegava em casa e dava ordem para todo mundo: ‘faz isso’, ‘faz aquilo." Então tinha esses dois lados, mas era mãe, né? Dava ordens e ao mesmo tempo era afável, carinhosa, divertida, era muito engraçada às vezes, essa era minha mãe. Não parava. Ela não era dedicada à maternidade intensamente. Mas ela era intensa, sempre envolvida em algum projeto”.

Nitis Jacon já estava doente há alguns anos. “Ela teve Alzheimer, e isso evolui com o tempo. Mas também teve uma diverticulite, algumas complicações que agravaram de certa forma a doença e, nos últimos dias, acabou tendo uma infecção que virou septicemia e uma pneumonia. Então, ela faleceu por conta dessa crise respiratória", explica.

"Foram alguns anos de uma outra Nitis. Porque foi ela foi deixando de ser aquela que foi, mas ao mesmo tempo foi criando uma outra Nitis. E ficou muito bem cuidada, meu irmão Orson, que ficava aqui em Arapongas, arrumou toda uma estrutura para atendê-la na casa que ela amou muito. Uma casa com um jardim muito grande onde ela plantou todas as flores. Ela ficou bem cuidada e aos poucos foi se adequando a essas rotinas caseiras, com os cachorros que ela amava, e o gatinho. Foi ficando alegrinha do jeito lá dela, em casa, com as cuidadoras, todas muito atenciosas. Nestes últimos anos foi essa trajetória. Ela nem sempre reconhecia as pessoas no final da vida. Uma vez, cheguei de viagem e uma das cuidadoras falou: ‘a Gisele, a sua filhinha’. E ela falou: ‘Cadê a Gisele? (risos). Ela provavelmente esperava aquela menininha, a criança, né? Mas às vezes reconhecia, você ficava do lado dela, ela acabava reconhecendo."

“Ela descansou. Faz parte da vida que ela termine em algum momento. Minha mãe foi uma mulher de muita energia, fez muita coisa pela arte, pela cultura no Paraná, em Londrina, em Arapongas, muito reconhecida. E na psiquiatria também. Minha mãe era médica psiquiatra e atendeu muitas pessoas que ficaram ligadas a ela por muito tempo”, diz.

No velório, aos pés de Nitis, a família deixou uma girafa de pelúcia que a acompanhava na hora de dormir nos últimos tempos e ela adorava. Os bichos de pelúcia foram oferecidos para que trocassem de lugar com o cãozinho de estimação que dormia com ela, e havia falecido.

No velório, a lembrança do bicho de pelúcia que acompanhava Nitis na hora de dormir: puro afeto
No velório, a lembrança do bicho de pelúcia que acompanhava Nitis na hora de dormir: puro afeto | Foto: Roberto Custódio


UEL PRESTA ÚLTIMA HOMENAGEM

Uma comitiva da UEL, com a reitora Marta Favaro, também compareceu ao velório nesta manhã. “Eu acho que perder um ser humano extraordinário como a Nitis é sempre muito doloroso. O que nos deixa reconfortados é que a história dela ultrapassa qualquer perda. A Universidade Estadual de Londrina é muito grata pelo exercício, pela resistência, pela disposição, pela alegria e pela potência que ela trouxe à cultura. Porque o nome dela reverbera em todos os espaços. Quando se fala em cultura, em expressão, em resistência, o nome da Nitis é reconhecido nesses espaços. Ela construiu uma rede muito potente e é uma rede que ainda permanece, porque ela é reconhecida pelo trabalho que construiu. Então, nosso profundo agradecimento pelo trabalho e pela vida que ela doou para a Universidade Estadual de Londrina, para a cultura do Paraná, do Brasil e internacionalmente”, afirma.

Quanto a alguma outra forma de homenagem a Nitis Jacon futuramente, a reitora diz que “não consegue responder agora, porque a gente precisa mobilizar os setores. Mas o que posso dizer é que essa homenagem já está sendo feita. Todos os nossos canais de comunicação já estão reverberando a história da Nitis na UEL e na cultura. Eu acho que isso é mais do que o reconhecimento da potência que foi a trajetória dela nesse espaço”.

Kazuo Ohno, Nitis Jacon e Yoshito Ohno: vinda dos dançarinos japoneses a Londrina foi uma das ousadias de Nitis
Kazuo Ohno, Nitis Jacon e Yoshito Ohno: vinda dos dançarinos japoneses a Londrina foi uma das ousadias de Nitis | Foto: Acervo FILO - Festival Internacional de Londrina

LUTO OFICIAL

Na manhã desta quarta-feira, Arapongas também decretou luto oficial de três dias. “A Nitis levou o nome de Arapongas e do Paraná para todo o Brasil e o exterior através do teatro, que ela amava e dirigia tão bem. É uma grande referência que se vai, uma grande perda que nos entristece a todos”, afirmou o prefeito Sérgio Onofre (PSC).

O prefeito Marcelo Belinati (PP) também havia decretado luto oficial de três dias em Londrina na terça-feira (19).

Artistas e amigos de Londrina foram a Arapongas para a despedida. O sepultamento deverá ocorrer na mesma cidade, nesta quinta-feira (21), às 10h. Ela será sepultada ao lado do marido, Abelardo de Araújo Moreira.

Entre as autoridades que compareceram ao velório, esteve o prefeito de Arapongas, Sérgio Onofre (PSC) e os secretário municipais Rafael Cita e Vanderlei de Souza.

GUERREIRA ATÉ A ÚLTIMA HORA

Lágrimas nos olhos, abraços carinhosos desejando conforto em um momento difícil e risos. Risos de quem conviveu com Nitis Jacon e sabe de tudo o que essa mulher intensa, efervescente e enérgica representa. Amigos, familiares e admiradores dos diversos trabalhos da artista fizeram do velório um ritual de lembranças e memórias da mulher que revolucionou a cultura em Arapongas, em Londrina, no Paraná e no Brasil, levando arte para o mundo.

Tendo atuado em várias peças de Nitis, Mira Roxo afirma que a amiga sempre lutou pela cultura londrinense, promovendo momentos e movimentos espetaculares ao longo de anos e anos de trabalho árduo. Apesar de todo o legado deixado por Nitis, Roxo ressalta que, hoje, a cultura de Londrina está em decadência, principalmente por movimentos recentes em prol da retirada de investimentos do setor cultural. “A Nitis sempre teve noção da importância da cultura em uma nação, ela sempre batalhou e espero que as pessoas herdem essa capacidade de luta e de determinação”, afirma.

Para Mira Roxo,  Nitis sempre trabalhou pela cultura londrinense promovendo momentos e movimentos espetaculares
Para Mira Roxo, Nitis sempre trabalhou pela cultura londrinense promovendo momentos e movimentos espetaculares | Foto: Roberto Custódio

Talvez o que mais caracterize a personalidade de Nitis Jacon seja sua intensidade. Nitis era intensa em tudo o que fazia, da carreira como psiquiatra às dezenas de palcos em que pisou. Companheira do grupo de teatro Proteu, formado na UEL em Londrina, Vic Victório ressalta que foi nesse momento que o mundo das artes se abriu para ela, já que teve a oportunidade de cursar a “Universidade Nitis Jacon”, como gosta de brincar. “Ela era intensa, não tinha um meio termo. Ao mesmo tempo em que tinha histórias de muita doçura, de muita risada, também tinha histórias de muita autoridade no sentido de como as coisas precisavam ser feitas”, relata.

Afirmando que a cabeça da mestra era “uma máquina” que estava sempre à frente de tudo e em busca de inovação, ela também tinha um olhar artístico com o qual conseguia tirar o melhor de cada uma das pessoas que cruzavam o caminho dela: “era de uma generosidade indescritível”.

Cruzando o oceano para o velório da mãe, que ele define como “brava”, Fernando Jacon conta que ele e os irmãos sempre viram Nitis fazer teatro bem de perto, assim como diversas outras coisas, influenciando para que ele também entrasse nesse mundo. “Eu espero carregar dela essa energia que ela sempre teve para o trabalho, eu tento ser isso, tento dar essa intensidade para as coisas que eu faço, fazer o que eu faço bem feito e eu acho que é isso que eu trago dela, de entender o teatro, a cultura, a arte e a importância disso na vida das pessoas”, conta emocionado.

Fernando Jacon veio da Europa para o velório da mãe:"Trago dela a compreensão de entender  o teatro, a cultura, arte e importância disso na vida das pessoas"
Fernando Jacon veio da Europa para o velório da mãe:"Trago dela a compreensão de entender o teatro, a cultura, arte e importância disso na vida das pessoas" | Foto: Roberto Custódio

Norma Nasser Gardemann conheceu Nitis Jacon em 1968 quando veio estudar química em Arapongas. Decidida a organizar um grupo de teatro, ela e outros estudantes convidaram Nitis para a direção. Daí em diante, a parceria seguiu até quando Jacon foi convidada para integrar o grupo Gruta, em Londrina. “Ela era fantástica, muito cheia de energia, que ela passava para a gente. Ela não admitia que ninguém chegasse com mal-estar para o ensaio, tinha que estar bem mesmo que não estivesse. Era super exigente com ela e com o grupo”, relembra. Dentre tantas peças que fizeram juntas, a que Gardemann mais gostou de fazer ao lado dela foi “Calabar”.

Para o Brasil, ela reconhece que Nitis Jacon deixa o FILO, um dos festivais mais longevos, assim como o fato de ser a peça-chave e a pioneira em tudo o que fez. “E com poucos recursos sempre, dando um jeito, achando uma maneira”, afirma.

Trabalhando ao lado de Nitis Jacon e do marido, Abelardo, por 25 anos, Jamil Cury foi administrador do Hospital Santa Rita, em Arapongas, até 1998. Ele relembra que, além de uma pessoa incrível, ela era uma médica excepcional, assim como o marido. “A gente se divertia demais. Eu lembro das noitadas em Londrina no Teatro Ouro Verde, em que eu ia sempre com eles assistir as peças dela, e depois a gente ia para os botecos”, ressalta.

Em relação à personalidade, a Nitis médica e a Nitis artista eram completamente diferentes, mas tinham em comum a competência e responsabilidade pelo trabalho. “Ela descansou. Ela estava sofrendo muito e a família também. Ela foi uma guerreira até a última hora”, reforça. (Jéssica Sabbadini/ Especial para a FOLHA)