Há 75 anos o Brasil perdia Mário de Andrade (1893-1945). Embora tenha ficado mais conhecido como escritor, o autor de Macunaíma foi um de seus intelectuais mais multifacetados da história do país. Nascido em São Paulo, atuou como poeta, pesquisador, músico, folclorista e crítico de arte. Ativista cultural que lutou pela valorização da identidade nacional, é apontado como um dos papas do movimento modernista brasileiro que deixou uma obra inovadora e atemporal que inclui romances, poemas, críticas, contos, crônicas, ensaios.

Pesquisador da obra de Mário de Andrade há mais de meio século, o londrinense Carlos Okawati possui diversos itens raros relacionados ao escritor paulistano. “Atualmente, tenho a maior coleção do mundo sobre Mário de Andrade, diria que maior que o da Biblioteca Mário de Andrade e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a sétima do mundo em quantidade de livros. São vários itens, mais de 600 livros, dezenas de revistas, recortes de jornais, discos vinil, cd, dvd, fotografia, selo, cédulas, cartazes, medalha, pôster, quadros, cartum, etc”, detalha.

Dentre diversas raridades, ele cita uma edição de “Há uma gota de sangue em cada poema” (1917), primeiro livro de Mário de Andrade, publicado sob pseudônimo de Mário Sobral. “Destacaria também Paulicéia Desvairada (1922), primeiro livro modernista do Brasil; Amar verto intransitivo, com “z” (1927); e Macunaíma (1928), do qual tenho três edições dos 800 exemplares publicados, inclusive um deles autografado por Mário de Andrade”, cita ao comentar que sua coleção vai além dos livros.

“Possuo três revistas “Ilustração Brasileira”, duas de 1921 e uma 1920, onde estão os primeiros artigos de Mário de Andrade publicados em impressos. Sobre as raridades internacionais, possuo traduções em diversas línguas, inglês, espanhol, alemão, italiano, francês, polonês, norueguês, dinamarquês e húngaro. Entre elas, a edição em inglês de Amar Verbo Intransitivo de 1933: “Fraulein” (translated by Margaret Richardson Hollingsworth, New York: Macalauy, 1933)”, complementa o colecionador.

Coleção de Carlos Okawati: Mário de Andrade, além de escritor, foi um grande pesquisador musical
Coleção de Carlos Okawati: Mário de Andrade, além de escritor, foi um grande pesquisador musical | Foto: Gustavo Carneiro

O londrinense que trabalha como professor de História confessa ter feito alguns sacrifícios para adquirir algumas relíquias que compõem o seu acervo. “Muitos sacrifícios. Mas tudo valeu a pena para adquirir o raríssimo e quase impossível. Além dos esforços financeiros de uma vida de professor, dediquei muito tempo de pesquisa para localizar essas obras. Por exemplo, para adquirir a obra de 1917, “Há uma gota de sangue em cada poema”, primeiro livro de Mário de Andrade, fiz um empréstimo em 96 vezes. Uma decisão complexa, mas consciente, já que na minha vida vi apenas dois exemplares disponíveis. Para ter ideia, um deles em um leilão com lance inicial de 17 mil reais. Não falo o quanto paguei no meu, senão vão me chamar de maluco”, diz com humor.

Apesar de não conseguir quantificar o valor de seu acervo, Okawati já definiu qual será sua destinação. “Pretendo negociá-la com uma Instituição Pública por um valor simbólico, deixando todo esse acervo disponível ao público”, revela.

Macunaíma: o início de uma paixão

O primeiro contato de Carlos Okawati com a obra de Mário de Andrade aconteceu ainda na adolescência. “Era meu aniversário de 14 anos (1971) quando meu pai me presenteou com uma caixa de madeira com uns 20 livros. Entre eles, três publicações de Mário de Andrade: 'Aspectos da Literatura Brasileira', 'Macunaíma' e 'Contos Novos.' Naquele momento, perguntei a ele quem era o autor das obras, e ele disse se tratar de um grande escritor paulistano. Desde esse dia, me interessei muito, comecei a ler e pesquisar tudo o que era relacionado a vida e obra de Mário de Andrade”, lembra.

Colecionador londrinense tem uma paixão maior pela obra 'Macunaíma'
Colecionador londrinense tem uma paixão maior pela obra 'Macunaíma' | Foto: Gustavo Carneiro

Dentre quase uma centena de livros publicados pelo escritor paulistano, o londrinense revela ter uma paixão maior pela obra mais famosa de Andrade. “Macunaíma, o herói sem nenhum caráter', de 1928, é um livro sempre atual e reflexivo. A obra rompeu os limites entre a cultura erudita e a cultura popular, entre o moderno e o tradicional, misturando os regionalismos de todos os sotaques brasileiro numa grande feijoada cultural nacional desgeograficada. De longe na imensidão do céu, hoje Macunaíma, observa o nosso país. Seguramente, está muito triste e indignado pelas mortes de milhares de brasileiros, sobretudo, porque ademais a pandemia, há uma outra ameaça ainda maior, o então Presidente da República, que além de vidas, destrói e ataca a cultura nacional”, salienta.

Pesquisador musical

Segundo Carlos Okawati, um lado pouco conhecido na trajetória de Mário de Andrade e que merece destaque foi o trabalho do escritor como pesquisador musical. “Ele foi pesquisador profundo da música erudita, folclórica, popular. Era professor no Conservatório Musical e Dramático da cidade de São Paulo e na extinta Universidade do Distrito Federal do Rio de Janeiro. Suas publicações sobre música são vastas e extensas, como 'Ensaio sobre a música brasileira' (1928);' Modinhas Imperiais' (1930); 'Samba rural paulista' (1937); 'O folclore no Brasil' (1949); 'Música de feitiçaria no Brasil' (1963); 'Danças Dramáticas do Brasil' (1969); 'Os cocos' (1984); 'As melodias do boi' (1987)”, cita.

O colecionador destaca ainda que quando Chefe do Departamento de Cultura da cidade de São Paulo (1934-1938), Mário de Andrade criou a Discoteca Pública. “Destaco também que em 1938, idealizou e realizou a Missão de Pesquisas Folclóricas com o objetivo de catalogar e retratar manifestações folclóricas no interior do norte e nordeste brasileiro. Contribuindo então para a construção da memória musical brasileira, bem como a criação da primeira coleção científica de registros sonoros do país. Considero que realizou o maior projeto multimídia da história do país, sendo essa uma das suas grandes contribuições”, conclui.