Curitiba - Quando era pequeno, vivendo no interior paulista, o ator Paulo Betti costumava acompanhar o avô em longas caminhadas pela trilha que levava à igreja de João de Camargo, na cidade de Sorocaba. As histórias que ouvia do avô sobre o escravo liberto que viveu no século 19 e sobre a capela erguida em homenagem ao negro ficaram no imaginário do ator. Agora, quatro décadas depois, Betti leva esses relatos para as telas, numa mistura de ficção e realidade. ''Cafundó'', longa-metragem que começa a ser filmado no Paraná na próxima terça-feira, conta a história de João de Camargo e marca a estréia de Paulo Betti na direção de cinema.
O ator e diretor não esconde que a idéia do longa se deu por uma ligação quase ''umbilical'' com as narrativas que escutava sobre Camargo. ''Existem muitas histórias para serem contadas e levadas ao cinema, essa é uma daquelas necessárias'', diz. Mas entre a idéia e a execução existe um longo caminho a ser percorrido. Há pelo menos dez anos Betti tenta conseguir recursos para rodar o longa. O projeto foi aprovado pelo Ministério da Cultura em 1997. Um ano depois, Betti pisava em território paranaense tentando apoio, só agora obtido, para as filmagens.
O filme vai trabalhar com orçamento inicial de R$ 3 milhões e terá locações em Paranaguá, no litoral do Estado; na Lapa, a 71 quilômetros a oeste de Curitiba e em Ponta Grossa. Serão mais de 150 cenas em diversas locações. As filmagens começam semana que vem e se estendem por dois meses. ''Vai ser uma verdadeira operação de guerra'', compara o diretor. Para dirigir o filme, o primeiro em sua carreira como ator e diretor de teatro, ele se associou ao diretor Clovis Bueno.
Betti Conta que o Paraná foi escolhido por três motivos: pelo cenário que privilegia as locações de época; pela estratégia (esses cenários estão relativamente próximos) e pela quantidade de bons atores que o Estado oferece. Sim, o filme vai contar com vários atores paranaenses. Tendo como protagonista o ótimo Lázaro Ramos (''Madame Satã'' e ''Carandiru'') no papel de João de Camargo, o filme reúne pelo menos 60 atores curitibanos, como Edson Bueno, Danilo Avelleda, Regina Vogue, Nena Inoue, Altamar César e Tupaceretan Matheus.
Todo esse time tem a missão de contar a curiosa história de João de Camargo. O ex-escravo trabalhava como capataz em uma fazenda em Sorocaba. Conta-se que numa tarde de 1905, quando uma forte tempestade caía sobre a cidade, Camargo decidiu voltar para a fazenda, mesmo estando embriagado como de costume. Ele teria parado na cruz erguida em homenagem ao garoto Alfredinho, que morreu vítima de uma queda de cavalo. Foi então que adormeceu e teve uma visão ou um sonho, como chegou a afirmar.
No sonho, o menino em forma de anjo, Nossa Senhora e São Benedito, santo cultuado pelos negros, teria conversado com Camargo, que se curou da embriaguês. Depois do episódio, Camargo nunca mais teria voltado a beber e passou a se dedicar aos pobres e doentes. Começou a atendê-los diante da própria cruz onde teria recebido a visão, mas com o movimento de fiéis vindo de todos os cantos do Brasil aumentando a cada dia, uma capela foi construída a 150 metros dali. A igreja existe até hoje e é a mesma que povoava a imaginação do menino Paulo Betti nos seus passeios com o avô, na década de 50.
Na época, o filho de lavradores nem pensava em se dedicar ao teatro profissionalmente, mas já mostrava vocação brincando de circo sob as jabuticabeiras dos quintais de Sorocaba. Na escola Paulo também já chamava a atenção declamando poesia. Mas foi aos 15 anos que passou a se dedicar ao teatro e já no começo da década de 70 ganhou um prêmio de melhor ator de teatro amador que lhe rendeu uma bolsa de estudos, permitindo que ele estudasse na Escola de Artes Dramáticas da Universidade de São Paulo. A estréia na televisão aconteceu em 1979 e, seis anos depois, Betti pisava em solo cinematográfico estrelando o filme ''Jogo Duro'', de Hugo Giorgette.
De lá para cá, Betti protagonizou mais de uma dezena de filmes e novelas. Chegou a filmar no Paraná o longa-metragem ''Oriundi'', ao lado de Anthony Quinn, em 1999. Agora, pela primeira vez como diretor e também assinando o roteiro, Paulo Betti diz que não se sente pisando em terreno desconhecido. ''Chamei o Clóvis Bueno para dirigir o filme comigo, mas não estou sentindo dificuldades. Os desafios são normais.''
O que tem preocupado Betti são as dificuldades inerentes ao cinema brasileiro. ''Nós conseguimos captar R$ 3 milhões, mas o filme vai precisar de mais. Depois que as filmagens terminarem, vamos ter que correr atrás de patrocínio para editá-lo'', revela. ''Cafundó'' tem previsão de lançamento para 2004.