Hoje, dia 5 de junho, Pedro da Silva Nava, considerado um dos maiores, senão o maior memorialista da literatura brasileira, estaria completando cem anos. Até os anos 70, Nava era um reumatologista famoso e escritor bissexto que trocara as letras e os círculos modernistas de Belo Horizonte pela medicina. Depois da publicação de ''Baú de Ossos'', seu primeiro volume de memórias, o autor passou a ocupar lugar de destaque entre o que de melhor produziu a memorialística brasileira. O sétimo volume, que receberia o título de ''Cera das Almas'', ficou incompleto. Com apenas 36 páginas, o livro foi deixado inacabado quando o escritor, em 13 de maio de 1984, pôs fim à sua vida.
Era um domingo, perto das 21 horas. O telefone toca e Dona Nieta, esposa de Nava, atende. Alguém, do outro lado, precisava falar com o escritor. Ele atende, sem dizer absolutamente nada, e só então comenta com a mulher: ''Nunca ouvi nada tão obsceno em toda a minha vida''. Sem aviso, sai para a rua, no bairro da Glória, no Rio de Janeiro, onde morava há quarenta anos. Senta-se num banco do jardim e ali permanece durante algum tempo até que dispara na têmpora um tiro de revólver Taurus, calibre 32. Estava encerrado o ciclo de memórias naveanas.
A seguir fragmentos de entrevistas concedidas pelo escritor à professora Edina Panichi e reproduzidas com exclusividade pela Folha2. Foram vários os encontros entre os dois o último aconteceu em 8 de abril de 1984, pouco antes da morte do autor.
Por que escrever memórias e não romances?
Quando senti que estava entrando nesse caminho de ficar só, analisando bem, pensei: ''O que é que vou fazer quando ficar velho, se estiver com a cabeça funcionando direito?'' Pensei em coisas que gosto: ser mercador de livros raros e velhos, que colecionei durante muito tempo de minha vida; ser mercador de gravuras, também tenho milhares delas. Pensei em tudo isso, mas depois resolvi retomar a minha tradição de mocidade. Eu tinha cultivado a literatura quando moço. E resolvi fazer uma literatura de velho, que não tinha idéia de expandir. Escrevia como distração, para meus irmãos, coisa que eles não sabiam, mas eu sabia sobre minha família. Escrevi meu primeiro livro e resolvi mostrar os originais a algumas pessoas que viviam insistindo comigo para escrever memórias, por causa de um artigo que fiz sobre Belo Horizonte, por ocasião do cinquentenário de Carlos Drummond de Andrade. E eu tinha dentro da cabeça aquela tentação. Mandei tirar quatro cópias: dei uma ao Drummond, para saber a opinião dele; uma ao Fernando Sabino e outro ao Otto Lara Rezende, amigos em quem deposito a maior confiança. O Drummond, que não faz visitas a ninguém, veio pessoalmente em casa me trazer os originais. Veio e ficou conversando comigo. E o que ele me disse foi de tal maneira para me encher de orgulho que nem repito: fica mal na minha boca. De qualquer modo, fez elogios que fiquei orgulhoso de receber. O Otto Lara aplaudiu, gostou muito. Disse que tinha que publicar, que aquele era um livro que não podia ficar apenas numa cópia de família. E o Fernando Sabino não me dizia nada. Até que um dia apareceu aqui. Ele tinha uma editora nesse tempo. Chegou e falou: ''A minha opinião do seu livro é essa''. E me passou o contrato de edição. Assinei e aí ele fez o corte do meu livro, que tinha inicialmente 600 páginas. Ele falou: ''Seu primeiro volume acaba aqui na morte de seu pai e na sua volta a Minas. Esse é um ponto capital de sua vida. Você interrompe aí, porque deixa uma margem de suspense para o leitor querer continuar a leitura da sua obra''. E você já fica com dois capítulos prontos para o segundo volume. Tanto assim que há um intervalo muito pequeno entre um livro e outro. Foi dessa maneira que fui para a memória.
Para Carlos Drummond de Andrade sua obra está entre o que de melhor produziu a memorialística brasileira. Como o senhor vê essa colocação?
Isso me envaidece profundamente, pelo respeito que tenho pelo Carlos, que é hoje um dos meus amigos mais antigos. Nos conhecemos em 1921, são 62 anos de amizade, sem nuvens. Nunca tive nenhuma rusga com o Carlos. Ele é naturalmente cerimonioso, reservado. Eu não gosto de tomar confiança, eu vou com as pessoas até onde elas deixam. Sou incapaz de fazer uma pergunta íntima a quem quer que seja. Há pouco, deu-se conosco uma cena engraçada. O Carlos me perguntou: ''Você não está notando nada de diferente na minha cara, não?'' Eu disse: ''Estou. Você está de bigode e com uma ferida no rosto''. Ele falou:''É exatamente por causa dessa ferida que estou de bigode. Porque quando vou escanhoar o bigode, eu corto e irrito a ferida. De modo que enquanto isso não cicatrizar vou ficar de bigode, mas depois vou raspá-lo''. O Carlos achou que devia me dar uma explicação. Eu a aceitei, mas nunca provocaria isso. Se ele aparecesse para mim com a cabeça raspada, com o bigode para cima, com os olhos para baixo, eu não teria nada com isso. Não sei fazer perguntas pessoais. Sou como os ingleses, que sempre mantêm uma boa amizade. Se eu achar um amigo abatido, acabado, aí falo com ele, chamo a atenção dele, mas como médico, e neste caso não é uma pergunta indiscreta.
O senhor disse que a prosa deve ser construída. Qual o seu método de construção do texto?
Eu sempre faço uma súmula do que vou escrever. Tomo nota, seguidamente, quando me ocorre uma lembrança interessante, um fato curioso ou quando vejo uma combinação de duas palavras bonitas em jornais ou livros. As páginas do meu caderno de anotações acabam virando uma fichinha que vou guardando, cada uma com um número. Quando terminei meus dois primeiros livros, joguei todas as fichas fora. Contei isso ao Drummond e ele me passou uma espinafração muito grande. Ele disse: ''Tenha respeito pelo que você escreve. Você guarde todas as notas porque se você for estudado mais tarde, você deixa isso como documentação''. Eu passei a seguir esse conselho e com isso adquiri maior respeito pelo que escrevo, porque para escrever cada página minha, eu consulto duas ou três fichas. Isso me deu certa tranquilidade, porque o que escrevo é resultado de elaboração e de notas, é um trabalho cavucado, meditado.
O senhor foi convidado a participar da Academia Brasileira de Letras e não aceitou. Que razões o levaram a isto?
Fui convidado oficialmente por dois grandes amigos meus da Academia que estiveram aqui em casa, onde estamos sentados, trazendo uma carta assinada por catorze acadêmicos. Eu disse que não tinha vontade de ser da Academia porque a Academia tinha um aspecto disciplinador que quem entra tem de adquirir um certo número de opiniões que são as opiniões da casa. É um partido muito forte, é um partido literário e eu não estava disposto a entrar para uma coisa dessa que me tirasse a liberdade de escrever as memórias como eu tenho escrito, arranjando muito inimigos. Eu digo a verdade até onde eu posso dizer. Eu não faço maledicência, mas gosto de gozar as pessoas, os ridículos, essa coisa, principalmente em cima disso é que eu bato. De modo que eu queria continuar com essa liberdade. Não aceitei a Academia Mineira, não aceitei a Academia Brasileira por essa razão. E pelo seguinte, porque eu ia me tornar um mau acadêmico, um mau companheiro. Ia perder amigos porque eu sou contra o critério adotado por todas as academias de Letras do Brasil, as estaduais e a grande, que é a Academia Brasileira, desse critério da eleição dos homens apenas ditos eminentes que, na maioria, não são homens eminentes, são homens que parecem eminentes, eles procuram se fazer de eminentes, são os medalhões de uma maneira geral. O patrono da Academia, que é o Machado de Assis, eu gosto muito da teoria do medalhão que ele escreveu: é o sujeito que não é nada e que parece que é tudo, que não aguenta uma análise e a Academia está cheia desses exemplos. Eu tenho eleitos como figuras eminentes, até amigos meus aos quais eu negaria o voto, de modo que eu ia arranjar inimizades. Grandes médicos que eu acho colegas fabulosos, mas não são letrados absolutamente, não são homens de letras. De modo que eu negaria o voto e ia arranjar um inimigo. É por isso que não tive e não tenho vontade de ser acadêmico.
Gostaria que o senhor dissesse alguma coisa sobre Pedro Nava brasileiro, médico, escritor, Pedro Nava pessoa.
Ele é uma boa pessoa e grande figura (interfere dona Nieta, esposa de Nava, que acompanha a conversa).
Esta é uma opinião suspeita, porque é parcial. Eu não me olho como grande figura, eu não me acho realmente... Sou um homem cheio de defeitos, sou impulsivo, tenho feito muito inimigo por causa disso. Agora, a meu favor eu digo o seguinte: Jamais ataquei uma pessoa primeiro, os meus ataques são revidantes, de modo que aí é uma qualidade; sou rancoroso, guardo muito as desfeitas, as afrontas que me são feitas, guardo muito. Mas não sou odiento, porque se eu fosse odiento na proporção em que sou rancoroso, no sentido de guardar e não perdoar, eu já teria matado alguém. Nesse sentido eu sou um titica... Mas, não vou procurar esforços não; a minha arma é a palavra, eu tiro esforços é nos meus livros, colando uma máscara nas pessoas ou tirando umas máscaras...
A professora doutora Edina Panichi, do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina, é uma estudiosa da obra de Pedro Nava. A professora tem em seu poder, cópias dos arquivos referentes à obra Beira-Mar/Memórias 4, cedidas pela família de Nava e que servem hoje como documentação de apoio a um projeto de pesquisa desenvolvido na UEL.