Cavando a liberdade
PUBLICAÇÃO
domingo, 29 de outubro de 2000
Marcos Losnak De Londrina Especial para a Folha2
Vamos supor que você ganhou de sua tia um presente. Um pacote pequeno, do tamanho de um livro. Você abriu o pacote e constatou que tratava-se realmente de um livro, um tal de Harry Potter. Ela disse que era última moda, que todo mundo estava adorando, que era lindo, etc.
Vamos supor que você, contagiado pela alegria de sua tia, deixou o futebol de lado e resolveu encarar o livro. Após alguns capítulos, para espanto de todos, jogou Harry Potter (de J. K. Rowling) para cima e começou a dizer que tudo aquilo era besteira, bruxaria pra cá, feitiçaria pra lá, coisa pra criancinha bobinha, história pra adulto com saudade da infância perdida.
Vamos supor que você tenha razão. Mas é inegável que sua tia agiu de boa vontade. Talvez ela apenas tenha escolhido, por força do furacão da moda, o livro errado para presentear você. É que existem muitos romances infanto-juvenis interessantes nas livrarias que, sem motivos aparentes, passam desapercebidos. Ficam escondidos pelos cantos das prateleiras até que um curioso leve-os para casa.
Um bom exemplo seria Buracos, romance infanto-juvenil do escritor norte-americano Louis Sachar recentemente publicado pela Editora Martins Fontes. Ele conta a história de Stanley, um azarado garoto de 13 anos. Membro de uma família pobre, Stanley é o gordo da escola, aquele que todo mundo tira sarro e, sempre que possível, humilha.
Certo dia, voltando da escola, Stanley encontra na rua um par de tênis usado. Sem pensar duas vezes, pega os tênis e segue em frente. Seu pai, procurando ganhar alguns trocados, está tentando inventar um jeito de reciclar tênis velhos.
Algumas quadras depois o garoto é preso pela polícia acusado de roubo. Para seu azar, os tênis que encontrou na rua pertenciam a um famoso jogador de beisebol. Estavam em exibição e seriam leiloados para financiar instituições de ajuda aos sem-teto. Valiam um bocado de dinheiro.
Sem conseguir provar sua inocência, é condenado e obrigado a cumprir pena de um ano de reclusão num campo de recuperação de jovens delinquentes bem no meio do deserto do Texas. Chamado ironicamente de Acampamento do Lago Verde, o campo fica no meio de um antigo lago seco povoado por escorpiões, cascavéis e lagartos venenosos. Um lugar onde nunca chove, com um sol capaz de cozinhar miolos em poucas horas.
A rotina diária do acampamento, de domingo a domingo, é sempre a mesma. Os garotos precisam cavar, com uma pá, um buraco de um metro e meio de diâmetro por um metro e meio de profundidade. Cada um cava seu próprio buraco no meio do deserto, com a terra seca e o violento sol dificultando a tarefa. Água racionada e comida em lata também fazem parte da rotina.
Logo no primeiro dia de labuta, Stanley recebe de seus companheiros de quarto o apelido de Troglodita e passa a conviver com uma turma da pesada: Raio X, Saco de Vômito, Bacalhau, Sovaco, Zero, Ziguezague, Magneto e outros. Fugir do lugar é impossível. Pode-se morrer de sede, picado por uma cascavel, mordido por um escorpião, ou envenenado por um lagarto. O sofrimento e a humilhação diária é recuperação que acende o pavio da revolta.
Quando a revolta explode em Stanley, ela assume a forma de uma aventura entre a vida e a morte: a fuga. Nesse ponto a história dos antepassados de Stanley entram no jogo e o próprio passado do lugar cem anos atrás, quando o Lago Verde era repleto de água e um povoado existia em suas margens. Associado a isso, o garoto descobre que a tarefa de fazer buracos todos os dias não é algo gratuito, a diretoria do acampamento procura alguma coisa no solo do lago e utiliza os internos como trabalho escravo.
Com uma linguagem deliciosa, em Buracos Louis Sachar narra três histórias paralelas que vão se encontrando, lentamente, em alguns pontos. Ao final, as três histórias tornam-se uma só, onde o presente e passado sentam num banco de sorveteria e tomam sorvete de cebola num verão de meio-dia. Narrado pelo próprio Stanley, o romance cativa tanto por seu conteúdo quando pelo tom em que é contado, onde o humor é colocado como sal pequenas pitadas que realçam o sabor do alimento. Sem fazer uso de elementos fantásticos, o autor constrói uma bela história com os tijolos da realidade e, como argamassa, utiliza o destino em sua forma mais inesperada.
Se você quiser saber tudo que acontece em Buracos, cruze os dedos para que sua tia percorra os cantos das estantes das livrarias para escolher seu próximo presente.
Buracos De Louis Sachar. Editora Martins Fontes, tradução de Eduardo Brandão, 248 páginas, R$ 24,50. (Editora Martins Fontes telefone: 11 239-3677 internet: http://www.martinsfontes.com).