'Candango' mostra como um oásis para o cinema surgiu em plena ditadura
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segunda-feira, 14 de dezembro de 2020
INÁCIO ARAUJO
(FOLHAPRESS) - O Festival de Brasília começou a surgir, com o nome de Semana do Cinema Brasileiro, em 1965, cinco anos depois da fundação da cidade, três anos depois da criação da Universidade de Brasília, onde surgiria o primeiro curso universitário de cinema no país, um ano depois do sucesso de "Deus e o Diabo na Terra do Sol" e "Vidas Secas" no Festival de Cannes.
Assim, não é de estranhar o caráter quase épico do documentário "Candango: Memórias do Festival". Talvez nem tenha sido essa a intenção do diretor Lino Meireles. Mas é um pouco difícil escapar disso, quando se acompanha o festival. Ele surge quando o cinema do Brasil chega à maturidade (com o cinema novo) e, sim, um ano depois do golpe de Estado de 1964.
Acompanhar a memória do festival significa incorporar todos os dados acima, as lutas e desditas do cinema e adicionar a presença em massa de um público jovem para quem o festival de cinema era uma válvula de escape das brutalidades do governo militar.
O Cine Brasília, sede do festival, era uma espécie de oásis na ditadura. Em especial nos fins de semana o público preenchia todos os assentos. E por assento entenda-se: poltronas, corredores, escadas, carpetes. Tudo o que acomodasse um corpo humano era ocupado.
De 1965 a 1971, o festival abrigou gritos e sussurros, numa era de grande inventividade, em que podiam estar presentes filmes tão diversos e tão fortes como o "Matraga", de Roberto Santos, "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla, "A Casa Assassinada", de Paulo C. Saraceni. Entre muitos outros.
Data desse período também o célebre soco que Rogério Sganzerla desferiu no crítico Rubens Ewald Filho só por não ter gostado do que ele escreveu sobre seu "A Mulher de Todos" -- episódio lembrado pelo próprio Rubens Filho, morto em junho de 2019. O evento era passional em vários níveis.
Tanto que o governo Médici houve por bem proibi-lo entre 1972 e 1974. Voltou em 1975. Viviam-se então os anos Embrafilme, mas também os da "distensão" e depois da "abertura", quando nunca foi maior o entendimento entre os espectadores e os filmes brasileiros.
São esses também os anos de brilho da Embrafilme. Hoje mal é possível acreditar que estar em Brasília, vencer o festival eram coisas essenciais para o sucesso de um filme. Com a decadência da Embrafilme, na segunda metade da sécada de 1980, o público desacreditou dos filmes.
Mas não o público do festival. Para ter uma ideia das paixões que moviam as plateias de Brasília, em 1991, pouco depois do governo Collor acabar com a Embrafilme, Neville d'Almeida teve seu "Matou a Família e Foi ao Cinema" intensamente vaiado. Não por causa do filme. Mas porque a atriz, Claudia Raia, era eleitora confessa de Collor.
Brasília enfrentou os duros anos pós-Embrafilme sem abrir mão do caráter nacional, ao contrário de Gramado, o outro grande festival da época, que internacionalizou-se e nunca mais foi o mesmo.
Admita-se que Brasília também já não é mais o mesmo, ao menos em termos de repercussão: ganhar o festival pode ser bom, mas não significa que o público acompanhará as escolhas do júri. Por tais desditas, diga-se, "Candango" passa batido. Está certo, pois são desditas do cinema brasileiro, não do festival. O filme prefere consagrar os bons achados do período pós-Collor, como o surgimento da escola pernambucana, a partir de "Baile Perfumado", de 1997, e o surgimento do cinema brasiliense, e que viria a dar no prêmio principal a "Branco Sai, Preto Fica", de Adirley Queirós, em 2014.
Até aqui falou-se mais do festival do que do filme, pelo bom motivo de que os dois são inseparáveis: isso é o que busca o filme de Meireles -- associar a política, o cinema, o festival. Boa parte do filme, talvez a mais preciosa, vem de arquivos. A outra, de depoimentos.
Se várias vozes se fazem ouvir, parece indisfarçável a simpatia de Meireles pelos principais realizadores do cinema dito marginal: Rogério, Júlio Bressane, Carlos Reichenbach, André Luiz Oliveira são tratados com cuidado especial pelo seu realizador, bem como Helena Ignez, através de curtas e cortantes intervenções.
Embora por vezes se note um excesso de depoimentos que por vezes acrescentam pouco ao material, o conjunto se equilibra sem perder a unidade, ainda que busque dar conta de um período histórico vasto pela extensão, pela intensidade e pela variedade dos filmes e da política.