Em julho de 1949, o escritor Albert Camus desembarcou no Rio de Janeiro para uma visita à América do Sul. Ainda não havia recebido o prêmio Nobel de Literatura, mas já era um dos grandes representantes de literatura francesa da época, ao lado de Jean Paul Sartre. Militante de esquerda, Camus foi recebido em solo brasileiro por Murilo Mendes, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e outros.
Durante a viagem, Camus (1913 - 1960) manteve um diário que veio a público em 1978, juntamente com o diário de sua viagem à América do Norte. Estes textos estão sendo lançados pela Editora Record num único livro, ‘‘Diário de Viagem’’. Os relatos de sua passagem pelo Brasil, Uruguai e Chile revelam um Camus doente, cansado e mal-humorado.
Anotações Sua primeira anotação, depois de caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro, foi: Os motoristas brasileiros ou são alegres ou frios sádicos. A confusão e anarquia deste trânsito só são compensados por uma lei: chegar primeiro, custe o que custar.’’ A segunda anotação diz respeito a contraste entre luxo dos palacetes e a pobreza das favelas: ‘‘Nunca o luxo e a miséria me parecem tão insolentemente mesclados’’. Observações que continuam atuais depois de quase 50 anos. Poucos dias antes de deixar o Brasil, escreveu algo profético: ‘‘O Brasil, com sua fina armadura moderna colocada sobre esse imenso continente fervilhante de forças naturais primitivas, me faz pensar num edifício corroído cada vez mais de baixo para cima por traças invisíveis. Um dia o edifício desabará, e todo um pequeno povo agitado, negro, vermelho e amarelo espalhar-se-á pela superfície do Continente, mascarado e munido de lanças para a dança da vitória’’.
Tudo indica ter sido a pior viagem de sua vida. Durante a travessia do Atlântico, Camus fica doente, o que seria o indício da volta de sua tuberculose. Em suas anotações pensa várias vezes em suicidar-se. Chegando ao Brasil precisa cumprir uma infindável lista de conferências, encontros, almoços, passeios, homenagens, que o deixam com a antipatia à flor da pele. Sua saúde piora a cada dia e ele ainda precisa passar pelo Uruguai e Chile. Suas últimas anotações no diário foram: ‘‘Doente, bronquite, no mínimo. Telefonaram para avisar que partimos esta tarde. Faz um dia radioso. Médico. Penicilina. A viagem termina num caixão metálico, entre um médico louco e um diplomata em direção a Paris.’’
Revolta De volta à França, Camus começa a escrever o livro mais polêmico de sua carreira, ‘‘O Homem Revoltado’’, publicado em 1951. A obra provocou uma tumultuosa briga com Jean Paul Sarte e toda a esquerda intelectual européia. Um autêntico quebra-pau que entrou para a história onde Camus foi verbalmente linchado.
‘‘O Homem Revoltado’’, publicado em janeiro pela Editora Record, é um ensaio fisiológico e histórico que questiona o direito de um homem assassinar outro homem em nome de um possível fim maior. Mais especificamente, Camus condenava os assassinatos cometidos em nome das revoltas nas revoluções sociais. Questionava as mortes pelas esquerdas para instalar a justiça social.
Aos olhos de hoje, ‘‘O Homem Revoltado’’, ganha uma nova dimensão e torna-se atual dialogando com acontecimentos dos dias de hoje. As primeiras palavras de Camus dão uma mostra: ‘‘Há crimes de paixão e crimes de lógica. O código penal distingue um do outro, bastante comodamente, pela premeditação. Estamos na época da premeditação e do crime perfeito. Nossos criminosos não são mais aquelas crianças desarmadas que invocam a desculpa do amor. São, ao contrário, adultos e seu álibi é irrefutável: a filosofia pode servir para tudo. Até mesmo para transformar assassinos em juízes.’’
Camus divide a revolta em duas faces da mesma moeda, a revolta metafísica e a revolta histórica. Mapeando estas faces chega à síntese de seu pensamento niilista, de que o valor da ação precede a própria ação. Exatamente o contrário do que os Existencialistas defendiam, de que todo valor está na ação consumada.
A realidade é que se assassina, tanto em nome dos fins como em nome dos meios - com os fins justificando os meios e os meios justificando os fins. E assim continuamos assassinando e sendo assassinados.
q Diário de Viagem - de Albert Camus, Editora Record, tradução de Valerie Rumjanek, 126 páginas, R$ 19,00.
q O Homem Revoltado - de Albert Camus, Editora Record, tradução de Valeri Rumjanek, 351 páginas, R$ 30,00/ Livraria Bom Livro.