São Paulo, 06 (AE) - David Mamet desembarcou em Cannes para o festival do ano passado acompanhado pelos atores Jeremy Northan, Nigel Hawthorne e Rebecca Pidgeon (sua mulher na vida real). Foram mostrar "Cadete Winslow". O filme, que passou fora de concurso, estréia amanhã (07). É ótimo. É uma adaptação da peça "The Winslow Boy", de Terence Rattigan, que já havia sido filmada por Anthony Asquith no fim dos anos 40 (no Brasil passou como Um Caso de Honra).
Numa entrevista para a Agência Estado, Mamet não deixou por menos e definiu "The Winslow Boy" como uma das melhores peças de todos os tempos. Não poupou elogios à carpintaria teatral de Rattigan. "É um melodrama brilhante e chega perto de uma tragédia, o que é muito difícil de construir". Humilde, chegou a dizer que gostaria de saber tanto sobre construção teatral quanto Rattigan. E contou que sua primeira intenção foi montar "The Winslow" Boy no teatro americano, mas faltaram atores. "Não consegui nenhum ator com força suficiente para ser o patriarca Winslow nem para fazer sir Robert".
Não desistiu por isso do projeto. Apenas o transferiu do palco para a tela. "Quando se conta com atores como Nigel (Hawthorne) e Jeremy (Northam), boa parte do sucesso já está assegurado; trata-se apenas de não errar no tom", disse. Solidariedade - Justifica-se o título que o filme antigo recebeu no Brasil. "The Winslow Boy" trata mesmo de um caso de honra. Um garoto é expulso da academia militar sob a alegação de que teria fraudado a assinatura de um colega para descontar um cheque. Seu pai não aceita a desonra. Acreditando na inocência do garoto, vai à Justiça. O primeiro problema é um advogado disposto a assumir o caso na rígida Inglaterra do começo do século. Entra em cena sir Robert Morton. O caso repercute na mídia. O povo nas ruas não faz outra coisa. Todo o mundo toma partido no episódio envolvendo o garoto Winslow.
A princípio, um caso desses - a repercussão de uma trama de honra no ambiente familiar - não poderia ser mais estranho ao universo dramatúrgico de Mamet, um autor conhecido por suas peças contemporâneas. Seus textos destilam violência física e verbal. Mas não é difícil perceber o que o atraiu nesse caso de honra. Há pontos comuns com "As Coisas Mudam", para citar apenas um filme que Mamet dirigiu. Como "As Coisas Mudam", "Cadete Winslow" também é um filme sobre a palavra empenhada - do cadete Winslow com seu pai e sir Robert, desses dois homens entre eles.
Mostra que a solidariedade humana pode emergir dentro da situação moralmente mais abominável. Sob a pressão da sociedade, a família não só não se desintegra como fortalece seus laços e a herdeira Winslow ainda arranja um noivo que é eticamente superior àquele que perdeu, quando o nome de sua família foi arrastado aos tribunais.
O filme também é expressivo ao retratar um momento de mudança na sociedade inglesa. O caso do cadete Winslow é encampado pelas suffragettes, que lutavam pelo direito de voto. Em 1928, 18 anos depois da época focalizada, as mulheres inglesas finalmente puderam votar. Uma dessas pioneiras é justamente a irmã do cadete Winslow, interpretada por Rebecca Pidgeon. À reportagem, Rebecca disse que considerava sua personagem, Catherine, o verdadeiro centro de "Cadete Winslow". "Sua luta pela igualdade das mulheres é consequente com a luta da família por justiça".
Um clássico - Nigel Hawthorne admite que ficou surpreso quando foi convidado por Mamet para fazer o filme. Estranhou, acima de tudo, seu interesse pela peça de Rattigan. Descobriu duplamente que nem ela ficou datada nem Mamet é tão contemporâneo quanto lhe parecia. "A forma como David escreve é muito pura", diz Hawthorne. "Cada fragmento de frase tem de ser dito exatamente como ele escreveu; nesse sentido, é um clássico: escreve com muita precisão e não há nada em excesso no seu texto".
Mamet costuma dizer que as palavras são bobagens. O significado de cada cena está além delas. Tem a ver com a ação e com o que se pretende dizer: a palavra é só parte de um conjunto que inclui o cenário, a decoração, a presença física do ator, sua movimentação em cena. Às vezes, tudo isso reunido é mais importante do que aquilo que o ator está dizendo. Jeremy Northam concorda. Ele estava em Cannes no ano passado com dois filmes: além de "Cadete Winslow", interpretava outro sir Robert na adaptação da peça de Oscar Wilde, "The Importance of Being Earnest", que encerrou o Festival.
Northam tem sido chamado a representar no cinema personagens identificados com a concepção tradicional do gentleman inglês. Mas ele diz que esse tipo de personagen tende a se tornar obsoleto, por mais que os sires Roberts dos dois filmes ainda tenham lições de coragem e integridade a dar.
É um belo filme também do ponto de vista visual. Mamet destaca a importância da contribuição do diretor de fotografia Benoit Delhome (de O Cheiro do Papaia Verde). Delhome trouxe-lhe um livro com pinturas do americano John Singer Sargeant, que trabalhou no mesmo período em que se passa a história do cadete. Baseados em Sargeant, Delhome e Mamet desenvolveram o conceito de uma fonte de luz branda. É o que Mamet define como "iluminação típica de uma janela".