Lançada na última semana, a série "Todo Dia a Mesma Noite" gerou uma divergência entre pais de vítimas do incêndio que matou 242 pessoas na boate Kiss, em Santa Maria (RS), há dez anos.

A Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria, cujos membros efetivamente inspiraram os personagens retratados na produção, fez questão de distribuir uma nota informando que se sente, sim, "representada" pela série produzida pela Netflix, "Todo Dia a Mesma Noite", ao contrário de um outro grupo de pais de vítimas, que promete processar o serviço de streaming.

Ao jornal Gaúcha ZH, o empresário Eriton Luiz Tonetto Lopes, que perdeu no incêndio a filha Évelin Costa Lopes, à época com 19 anos, falou que há um sentimento de indignação e injustiça entre esse outro grupo de pais de vítimas, que se formou em função das queixas à produção.

"Nós fomos pegos de surpresa, ninguém nos avisou, ninguém nos pediu permissão. Nós queremos saber quem está lucrando com isso. Não admitimos que ninguém ganhe dinheiro em cima da nossa dor e das mortes dos nossos filhos", disse Lopes ao jornal gaúcho.

Em resposta a esse grupo, o presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, Gabriel Rovadoschi Barros, publicou nota em sua rede social garantindo que os familiares estavam "cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro" homônimo de Danila Arbex, e a entidade "sente-se representada" pela criação da Netflix e pelo livro.

O texto ressalta que a produção "não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância".

O recorte a que Barros se refere é uma escolha fundamentada de modo objetivo: os pais lá retratados são os que foram processados por integrantes do Ministério Público por terem feito críticas à atuação dos promotores no caso. É por meio desses personagens que a série reconta o que aconteceu em Santa Maria, sem citar nomes reais.

Na semana anterior à estreia, a Netflix promoveu inclusive um encontro, até então inédito, entre alguns atores da série e os pais da vida real retratados por eles, mas todos tinham conhecimento da produção desde o seu anúncio e por meio de Daniela Arbex, autora do livro, que serviu de ponte entre os dois lados.

A Folhapress aguarda manifestação da Netflix sobre o assunto.

Leia abaixo a íntegra da manifestação da Associação em apoio à série e à Netflix:

"Perante a divulgação em inúmeros veículos da imprensa acerca de um processo contra a empresa Netflix em função da série Todo Dia a Mesma Noite, a Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da tragédia de Santa Maria esclarece através desta nota que estávamos, sim, cientes que a produção estava sendo realizada com base nos personagens do livro Todo Dia a Mesma Noite: a História Não Contada da Boate Kiss, de Daniela Arbex, e sente-se representada por ela bem como pelo livro da autora.

A produção não retrata de forma individual os 242 jovens assassinados, mas sim um recorte das quatro famílias de pais que foram processados. Todos familiares de vítimas e sobreviventes retratados por personagens da obra estavam cientes e em concordância. Além disso, reiteramos que não estamos movendo nenhum processo contra as produções, nem pretendemos, por acreditarmos na potência das produções na luta por justiça e a luta por memória.

Acreditamos, acima de tudo, que tragédias como a que vivenciamos precisam ser contadas através de todas as formas. Recontar essa história significa denunciar as inúmeras negligências e tentativas de silenciamento que encontramos pelo caminho, além de auxiliar na prevenção para que esse tipo de tragédia não aconteça com mais nenhuma família, algo que temos como propósito desde o primeiro dia de nossa fundação.

Mostrar o que aconteceu na Kiss faz com que a morte de nossos filhos e filhas, irmãos e irmãs, pais e mães, amigos e amigas não tenha sido em vão. Mostrar a morosidade, a burocracia e como é o sistema judiciário brasileiro serve como denúncia e como protesto. É preciso falar, debater, produzir materiais sobre o que aconteceu naquela trágica noite de 27 de janeiro de 2013, pois só assim conseguiremos que as pessoas entendam o que a ganância, a negligência e a omissão são capazes de fazer. Em Santa Maria, esses fatores mataram 242 jovens e deixaram 636 com marcas físicas e psicológicas.

Entendemos que rever a tragédia, principalmente nos dois primeiros episódios, pode mobilizar os sentimentos, as lembranças e dimensionar a impunidade em sua ferocidade e, com isso, a associação se disponibiliza a acolher e a promover ações para comporem o movimento por Justiça.

Por fim, esclarecemos que desde o dia 27 de janeiro de 2013, nós sofremos com a perda irremediável de nossos filhos, irmãos e amigos, sabemos o quanto isso nos dói. Não há nenhum valor sendo pago a nós com a produção, e o que ganhamos é a crença no fortalecimento na luta por justiça e pela memória. Para que não se repita.

Santa Maria, 29 de janeiro de 2023."

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