‘Blade Runner 2049’: o choque entre os velhos modelos de replicantes rebeldes e os novos, úteis às necessidades do sistema, fica bem claro desde o início
‘Blade Runner 2049’: o choque entre os velhos modelos de replicantes rebeldes e os novos, úteis às necessidades do sistema, fica bem claro desde o início



Havia, claro, o natural temor da legião de fãs, muitos na condição de cães de guarda da obra prima de 1982 em pouco tempo transformada em cult intocável (e mais ou menos incompreendida e maldita após um quase linchamento inicial). Agora, podem baixar a guarda depois da sofrida vigília, fieis sacerdotes de "Blade Runner": a continuação que chegou quinta-feira (5) às telas do mundo confirma que são perdedores os que apostaram (e maldisseram) contra a sequela. Os mais fanáticos juntaram as mãos e rezaram com fervor a Philip K. Dick, uma das divindades fundamentais da ficção científica e autor de "Sonham os Andróides com Ovelhas Elétricas?", texto em que se baseia o filme original. Pois a angústia e a incógnita chegaram ao fim com a estreia de "Blade Runner 2049".



Ambientada 30 anos no futuro (o filme matriz se passa em 2019), a obra de agora regressa a um mundo no qual a humanidade se expandiu para mais além dos limites do planeta usando como mão de obra escrava um contingente de androides, os replicantes, mais fortes e inteligentes que os homens. Os replicantes são quase humanos (ou mais que humanos, como os definem seus criadores), mas quando exigem ser tratados com direitos iguais começam a ser eliminados, como se esta reclamação fosse um defeito de fábrica. Os encarregados de eliminá-los (e eliminar significa executar) são os blade runners, trabalho a cargo de humanos no filme seminal de Ridley Scott, mas que agora é levado a cabo por uma nova geração de replicantes, mais dóceis. Esta diferença se traduz em mudança de ponto de vista, já que o papel protagonista desta vez é ocupado por um replicante, o agente K (Ryan Gosting), em vez do agente humano Rick Deckard (Harrison Ford). O choque entre os velhos modelos de replicantes rebeldes e os novos, úteis às necessidades do sistema mas da mesma forma discriminados pelos humanos, fica bem claro desde o início. Mas agora a discussão sobre o humano e o caráter pessoal consciente se expande um pouco além do suporte físico (os androides) para chegar inclusive a programas cuja manifestação é apenas uma projeção hologramática. Não bastam a razão e autoconsciência para estabelecer o que é o humano, mas surge o que parece ser uma condição religiosa: a alma, aquilo que o define.

Com um visual estonteante,’Blade Runner 2049’ é um filme que sabe de sua importância sem ser arrogante
Com um visual estonteante,’Blade Runner 2049’ é um filme que sabe de sua importância sem ser arrogante | Foto: Fotos: Reprodução



A recorrência a palavras como milagre ou alma não é casual: "Blade Runner 2049" é também uma espécie de fábula religiosa (sem aquela Bíblia de bolso usada por Aronofsky em "mother !"...). Nesse sentido , o filme tem muito do mito cristão, recurso ao qual o cinema hollywoodiano recorre com assiduidade. Aliás, não é estranho que isto ocorra no universo de Blade Runner, se levar-se em conta que a questão religiosa é essencial na obra de Dick. Visualmente espetacular, narrativamente firme e correta e com muitas sequências impactantes, a sequela do clássico de Scott tem todos os elementos para se transformar em novo cult do gênero de ficção científica distópica com "look" apocalíptico, elementos próprios do "neo noir" e não poucas ambições filosóficas. Com um visual estonteante do exímio diretor de fotografia Roger Deakins e um diretor de comprovado talento e prestígio crescente, o canadense Dennis Villeneuve ("A Chegada", "Sicario"), "Blade Runner 2049" é um filme que sabe de sua importância sem ser arrogante, embora aqui e ali insista em ser solene e grave em demasia. Atenção: lá pelo minuto 110 (o filme tem 163), reaparece num quase demolido cassino de Vegas o Rick Deckard de Harrison Ford. Desde este momento, a narração ganha em suspense, intriga, humor e emoção até chegar a um intenso desenlace com ares épicos e ressonâncias de western (logicamente futurista).