Desde que estreou no cenário artístico nacional em 1973, como vocalista do grupo Secos e Molhados, Ney Matogrosso optou por falar abertamente sobre assuntos polêmicos. Em entrevistas, o cantor costuma abordar sem tabu temas como sexualidade, suas posições políticas e seu estilo de vida bastante peculiar. Apesar da transparência adotada, o artista que completa 80 anos no dia 1º de agosto ainda é visto como uma figura enigmática que continua gerando curiosidade e espanto quase cinco décadas depois de abalar o meio artístico com sua voz única e seu talento arrebatador.

Há cinco anos, o jornalista paulistano Julio Maria assumiu a difícil missão de tentar desvendar o enigma chamado Ney Matogrosso. Nesse período entrevistou quase 200 pessoas ligadas ao artista, visitou a cidade onde ele nasceu e teve de vários encontros com o biografado. O dossiê produzido pelo repórter de cultura e crítico musical do jornal O Estado de São Paulo chegou ao público nessa semana. Lançado na última sexta-feira (23), o livro “Ney Matogrosso – A Biografia” traça um perfil minucioso de um dos maiores artistas do Brasil. Editada pela Companhia das Letras, a obra reúne informações inéditas e imagens raras do cantor distribuídas em 480 páginas.

O jornalista e escritor destaca que trazer a história do Ney Matogrosso nesse momento conturbado que o Brasil atravessa é, antes de tudo, uma escolha política. “Ele fez de sua vida e sua arte um símbolo de liberdade e resistência. Sobreviveu aos tempos de chumbo da ditadura. Enfrentou de cabeça erguida o preconceito ao falar abertamente sobre sua sexualidade. Sobreviveu à perda de amigos e amores que morreram de Aids. E apesar de expor suas ideias libertárias no palco e em entrevistas nunca foi atacado por extremistas, como já aconteceu com o Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e outros artistas de sua geração. Eu queria muito entender como ele conseguiu driblar tudo isso", comenta.

Outro fator importante apontado por ele para justificar sua decisão de esmiuçar a vida do cantor foi a certeza de que teria imparcialidade para narrar as histórias que investigou. “Eu não queria fazer uma biografia chapa branca contando apenas coisas positivas. Como eu não tinha essa ligação de fã, pois apesar de admirar sua trajetória nunca tive um disco do Ney em casa, achei que conseguiria ser mais fiel aos fatos”, relata o jornalista que, em 2015, foi contemplado em 2015 com o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) pelo livro “Nada será como antes”, título dado à biografia de Elis Regina que ele escreveu.

A imersão de Julio no universo particular de Ney Matogrosso teve início com uma visita à cidade natal do cantor. “Minha intenção não era fazer um compilado com episódios já narrados por ele em entrevistas. Eu queria saber de que barro o Ney saiu, o que explica a mente dele. Então fui até a cidade de Bela Vista, que fica no Mato Grosso do Sul e faz divisa com o Paraguai. Visitei a casa onde ele nasceu e conversei com pessoas que conviveram com ele na infância. Me contaram que desde criança o Ney sempre viveu imerso na natureza, passava horas e horas sozinho na mata, em cima cima das árvores. Esse comportamento fez com ele estivesse mais próximo da linguagem dos animais da floresta do que dos homens. Isso explica os silêncios que ele cultiva até hoje e o fato de Ney ser bastante objetivo de pouco afeito a diplomacias”, diz.

Segundo Julio Maria, desde criança o Ney sempre viveu imerso na natureza, passava horas e horas sozinho na mata,esse comportamento fez com ele estivesse mais próximo da linguagem dos animais da floresta do que dos homens.
Segundo Julio Maria, desde criança o Ney sempre viveu imerso na natureza, passava horas e horas sozinho na mata,esse comportamento fez com ele estivesse mais próximo da linguagem dos animais da floresta do que dos homens. | Foto: Bob Wolfenson/ Divulgação

Na avaliação do jornalista, a essência hippie e desapegada de Ney faz com o artista cultive a liberdade em todos os aspectos de sua vida. “Ele sempre vivenciou o amor livre, sem amarras ou convenções românticas. A única vez que jurou fidelidade a alguém foi por um rapaz que conheceu em Brasília, na época em que serviu o exército. Depois disso nunca mais viveu uma relação monogâmica e nem cobrou exclusividade de ninguém. Foi apaixonado por homens e mulheres. Teve até um caso amoroso com a cantora Simone no começo dos anos 1980. Porém, evita falar sobre algumas histórias não por pudor, mas por receio de invadir a vida alheia. Quando perguntei se os boatos sobre o namoro com a Simone eram reais, ele fez questão de ligar para ela para perguntar se poderia abrir a história no livro. Ela consentiu e até me recebeu em seu apartamento para uma entrevista sobre o assunto”, comenta.

FIEL À IDEOLOGIA LIBERTÁRIA

Julio ressalta que apesar de não se entregar a relações monogâmicas o cantor sempre foi fiel no cuidado em relação às pessoas por quem foi apaixonado. “Ele e o Cazuza foram muito apaixonados um pelo outro, mas os dois ficavam com outras pessoas na época em que namoraram. Quando o Ney soube que o Cazuza estava doente, ia visitá-lo com frequência para fazer uma massagem que o Cazuza adora e levava leite de cabra de sua fazenda para ele. Na época em que o Marco de Maria, com quem Ney namorou por mais de dez anos, recebeu o diagnóstico de Aids, o cantor montou praticamente um hospital em sua casa, com equipe médica 24 horas e hospedou familiares do namorado que foi cuidado por ele até morrer em seus braços. Nesse período em que a Aids era vista como uma peste gay, o Ney chegou a ir ao cemitério três vezes numa semana para enterrar amigos que morreram da doença e ele mesmo considera um milagre não ter sido contaminado”, relata.

VITALIDADE NO DNA

A surpreendente forma física e vocal que Ney ostenta aos 80 anos de idade é atribuída pelo jornalista ao DNA familiar e à disciplina rigorosa cultivada pelo cantor. “Acho que é coisa de família. Fiquei impressionado com a lucidez e a força da mãe do Ney que vai fazer 100 anos em 2021. Quando fui entrevistá-la na fazenda onde mora, ela me chamou para mostrar uma cobra que havia matado com uma enxada. Entrevistei também um irmão que é dois anos mais velho e tem a mesma forma física do cantor. Além dessa questão genética, a vitalidade do Ney se deve à sua rotina saudável. Ele come muito pouco, nunca sai da mesa com a barriga cheia e faz exercícios com personal diariamente”, detalha o jornalista.

SEM AMARRAS

Quando comunicou ao Ney os planos de escrever sobre sua vida, Julio diz ter ouvido apenas uma ressalva por parte do cantor. “Não tenho nada a esconder, mas não quero ler mentiras sobre a minha vida. Se isso acontecer, você vai responder na justiça”, afirmou o artista. O jornalista comenta que não houve restrição a nenhum tema abordado na biografia. “Ele leu o livro depois de pronto e não pediu para tirar e nem acrescentar nada. Pediu apenas para corrigir algumas informações em relação a datas e locais em que ocorreram alguns fatos citados. Tive liberdade até mesmo para falar sobre algumas polêmicas, como a vaia que Ney recebeu na abertura do Rock in Rio em 1985, ocasião em que parou o show e ficou olhando firme para a plateia tentando localizar a pessoa que o havia xingado de bicha, fato que se repetiu outras vezes ao longo da carreira e que ele enfrentou da mesma forma, de cabeça erguida, deixando os agressores constrangidos”.

Após viver cinco anos investigando a vida do artista, Julio revela ter concluído sua missão admirando ainda mais a trajetória do biografado. “O Ney Matogrosso é um homem livre e dono de um caráter ímpar, acho que isso o ajudou a ter o respeito que ele desfruta até hoje”, ressalta.

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. | Foto: Foto de capa: Bob Wolfenson/ Divulgação

SERVIÇO:

"Ney Matogrosso - a Biografia"

Autor: Julio Maria

Editora: Companhia das Letras

Quanto: R$ 89,90 - 480 páginas