Quando o feminismo está na pauta até mesmo do "Big Brother", a sensação é de que a luta das mulheres por igualdade está no caminho certo. Há, no entanto, um ponto ainda frágil no cenário, inclusive retratado no programa: como remediar a impaciência que muitas vezes inviabiliza o debate entre defensores da causa e iletrados que querem apreender o assunto?

Muitas mulheres alegam que não é seu papel ensinar homens adultos, mas o que elas diriam ao saber que Simone de Beauvoir, maior ícone feminista da História, não só se dispunha à instrução alheia, como também abraçava os dissonantes? Esta faceta é um dos pontos abordados por "Simone de Beauvoir: Uma Vida".

"A disposição dela de se conectar com pessoas de quem discordasse é algo admirável, e que eu gostaria de ver com mais frequência hoje em dia", resume a inglesa Kate Kirkpatrick, doutora em filosofia, e autora da biografia. "Uma das coisas mais interessantes em Beauvoir é sua boa vontade para escutar pessoas com diferentes pontos de vista".

Kirkpatrick recorda a coluna "Le Sexism Ordinaire", editada por Beauvoir no francês "Les Temps Modernes", nos anos 1970, em que havia espaço não apenas para todas as feministas. "Ela publicou também aquelas de quem ela discordava, porque achava que era importante ter conversas sobre questões que a preocupavam".

Foram dez anos de pesquisas, e outros três no processo de escrita. Esta não é a primeira biografia da francesa –há outros exemplares no mercado, como a de Carole Seymour-Jones– mas é o primeiro livro do gênero assinado por um filósofo.

"É também a primeira biografia dela depois da publicação de seus diários de estudante e diversos conjuntos de cartas dela aos seus amantes além de Jean-Paul Sartre", explica Kirkpatrick, mencionando a correspondência entre Beauvoir e o jornalista francês Jacques-Laurent Bost, tornada pública em 2018.

Em sua obra-prima "O Segundo Sexo", publicado em 1949, Beauvoir fala que as mulheres cresceram, por séculos, encorajadas a entender que o amor é a razão principal da existência, evitando, assim, ambicionar outros projetos. E, mesmo que tivesse muitos outros planos de vida, Beauvoir sofreu do mesmo mal, sendo muitas vezes eclipsada pelo parceiro, o filósofo Jean-Paul Sartre.

Beauvoir e Sartre ficaram juntos por décadas, exercendo o que chamavam de "pacto" –um contrato de dois anos, sem que fosse necessário abandonar os casos que mantinham com outras pessoas.

"Perguntavam-lhe com frequência como eles haviam feito o relacionamento dar certo, e sua resposta foi que as pessoas precisam decidir juntas a natureza de seus acordos", remonta um trecho de "Simone de Beauvoir: Uma Vida". No livro, Kirkpatrick conta a história do casal desde o início.

Não foi paixão à primeira vista. Outra passagem da biografia diz: "Os diários mostram que o coração dela tinha muitos objetos de afeto, cada um dos quais ela achava adorável por suas próprias razões."

Houve, por exemplo, o amor por René Maheu, que lhe deu o apelido que carregaria por toda a vida adulta: "beaver", que, em português, significa "castor", e que, em inglês, brincava com a ordem das letras do sobrenome de Simone. Ela, por sua vez, o identificava carinhosamente como "lama".

A biografia revela que a relação com Sartre era complicada. "Sartre claramente pensava que Simone tinha capacidade para escrever grandes coisas, mas é evidente que em momentos importantes não tinha compaixão pelo sofrimento dela. E, durante o primeiro ano do pacto, Beauvoir teve muitas dúvidas –sobre Sartre, sobre si mesma."

Para Kirkpatrick, 1943 representou um ponto de virada na trajetória de Beauvoir. "A partir dali, ela tem confiança de que vai ser publicada, e também passa a repetir que sempre teve algo a dizer. Ela rejeita uma mentalidade que teve durante boa parte dos anos 1930, que diz que apenas a opinião do Sartre importava."

"Ao longo da vida, ela percebeu que as pessoas a idealizaram, e isso a preocupava porque ela achava que não era bom para as mulheres idealizar ninguém. Ela provavelmente ficaria surpresa ao saber o quanto as pessoas ainda recorrem ao seu trabalho até hoje. Uma vez, ela disse que 'O Segundo Sexo' se tornaria redundante porque o feminismo teria sido bem-sucedido, e esse tipo de trabalho não seria mais necessário."

Entre as teses filosóficas mais conhecidas de Beauvoir está aquela que diz que ninguém deseja a mesma coisa por toda a vida. Mas houve, em sua biografia, um elemento sonhado por ela desde a infância até o final da vida: ser livre.

"Para que um amor fosse autêntico, ele precisava respeitar sua liberdade", diz Kirkpatrick. "Ela tinha um profundo desejo de independência, e isso era consistente, assim como seu desejo de existir junto dos outros."