Participantes do maior reality show da televisão brasileira trazem doses diárias de emoções para mexer com o imaginário e a curiosidade de quem está do outro lado da tela. Telespectador ou não, o fato é que ninguém está imune a uma enxurrada de informações que discorre a todo momento sobre os acontecimentos de um grupo de pessoas confinado naquela que é a considerada a casa mais ‘vigiada’ do Brasil: o Big Brother Brasil.

Por que o programa tem tanta audiência? Por que o público é envolvido pelo comportamento dos Big Brothers? Por que o confinamento dessas pessoas é tão curioso? Para responder parte desses questionamentos e compreender um pouco mais sobre o comportamento humano, a FOLHA conversou com o psicanalista em Londrina, Sylvio do Amaral Schreiner.

O reality show é uma fórmula televisiva que deu certo porque atrai e fideliza o público. De onde vem essa "curiosidade" das pessoas sobre a vida do outro?

Tem uma frase antiga que diz: ‘tudo que é humano não me é desconhecido’. Ou seja, tudo que tem a ver com a vida humana desperta curiosidade porque a gente se vê e se coloca no lugar do outro. Os reality shows dão tanta audiência porque as pessoas passam a se ver e a se comparar através de outras pessoas. Elas acreditam que, muitas vezes, vão entrar na intimidade do outro e quem não tem curiosidade sobre seus vizinhos? Como eles vivem? Como brigam? Como transam? Essa curiosidade sempre nos acompanhou e agora a televisão encontrou um jeito de fazer isso comercialmente. A curiosidade do ser humano sobre a vida do outro sempre existiu. Está conosco desde o princípio, desde o tempo das cavernas.

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Como você vê o comportamento das pessoas que participam do programa: são pessoas, personagens ou as duas coisas?

Não só nos programas, mas as pessoas na vida real têm algo do “falso self”, conceito apresentado pelo psicanalista Donald Winnicott, que é como a pessoa acredita que ela tem que ser e assim, tenta se portar de uma determinada maneira para se adequar àquela idealização. São poucas pessoas que são completamente sem máscaras, sem armaduras. Na maior parte das vezes, as pessoas estão usando máscaras e acreditam que precisam desses artifícios. O que acontece lá no BBB acontece aqui fora também, mas a questão é que no ambiente televisionado, por ser um grupo pequeno de pessoas, essa questão ganha uma lente de aumento.

Como você analisa as reações dessas pessoas, pegando pelo lado de comportamentos negativos e desconstrutivos ou mais positivos e construtivos em relação aos outros do grupo?

No programa tudo é intensificado e a gente consegue identificar mais os lados negativos e desconstrutivos, assim como os construtivos e positivos. Fica mais aparente e não tem como fugir disso porque é a vida. Ninguém é 100% vilão ou 100% santo. A gente tem uma ideia muito primitiva do maniqueísmo, isto é, aquilo que é bom é bom, totalmente maravilhoso, irretocável, e aquilo que é mau é vilão, tem que ser destruído, colocado pra fora, bem longe. A vida real não é assim. A gente vê nessas pessoas que estão no BBB, que elas têm lados desconstrutivos e construtivos ao mesmo tempo. Às vezes, um lado prevalece mais sobre o outro mas, enfim, é uma pessoa como todos nós aqui fora, com nossos limites, nossos preconceitos e também com nossos lados amorosos e gentis. O fato é apenas que lá no BBB isso fica realçado.

 Sylvio do Amaral Schreiner: “Não só nos programas, mas as pessoas na vida real têm algo do “falso self”,  que é como acreditam que têm que ser e se portar, de maneira que se adequem àquela idealização”
Sylvio do Amaral Schreiner: “Não só nos programas, mas as pessoas na vida real têm algo do “falso self”, que é como acreditam que têm que ser e se portar, de maneira que se adequem àquela idealização” | Foto: Ricardo Chicarelli/ Divulgação

As intrigas, puxadas de tapete e fofocas são estimuladas pelo jogo, mas isso é também um espelho das relações sociais na realidade. Como você analisa?

Isso tudo acontece nas relações sociais da vida real, a toda hora, com pessoas querendo se dar bem por cima das outras, espalhando mentiras e isso acontece porque faz parte de como as pessoas se relacionam umas com as outras e com elas mesmas. Para isso não acontecer a pessoa precisa ter um desenvolvimento interno maior, mais expandido, pois estamos em todos os momentos formando joguinhos, assim como é escancarado no programa. Só mesmo uma pessoa madura para não criar jogo e nem entrar nele, isto é, não vai se envolver com qualquer coisa. É nosso lado primitivo que nos leva a esses joguinhos e nos fazem ser bastante danosos.

As neuroses, paranoias e recalques podem aflorar em situação de confinamento e de relacionamento em grupo fechado?

Com certeza. Não é que o grupo cria as paranoias, os recalques. Isso já existe dentro das pessoas e acaba aflorando quando se está em grupos fechados, em confinamento e com menos distrações disponíveis. Por exemplo, no início da pandemia a gente viu que aumentou bastante o número de violência contra mulheres e não é que isso não existia. Já existia, mas no dia a dia isso fica dissolvido. Em um confinamento, tudo aquilo que está dentro de nós acaba aparecendo com maior intensidade. Quando a pandemia surgiu de uma forma inesperada e as pessoas foram obrigadas a ficarem em casa, vimos comportamentos extremamente egoístas como, por exemplo, daqueles que saíram comprando todo o papel higiênico dos mercados. A pandemia apenas revelou o egoísmo que já existia. É nessas situações limites que tudo aquilo que está dentro da pessoa começa a ficar mais nítido e dentro de um grupo fechado acaba ficando apenas mais visível.

Qual a semelhança disso com o confinamento que somos obrigados a viver agora em função da pandemia?

Nunca houve tantos pedidos de divórcio quanto na pandemia. Isso acontece porque, de fato, começa a aflorar o que antes não era percebido. Os casais se envolviam com tantas outras distrações que, quando tiveram que conviver mais proximamente, passaram a perceber que o casamento não tinha nem razão de existir. Quando a gente tem que conviver durante um tempo com alguém, sem escapatória, passamos a conhecer o que outro gosta e o que não gosta, e o que é possível suportar e aquilo que não é. A gente está vivendo um certo reality show. Estamos confinados, claro que em um espaço maior, mas está acontecendo na nossa vida tudo o que acontece lá, no programa de reality.

O comportamento do público também é de muito envolvimento e, ao mesmo tempo que há críticas à hostilidade, agressividade e preconceitos embutidos no jogo, a plateia ao interagir também mostra sua parcela de discriminação e preconceito ao agredir verbalmente nas redes sociais os participantes. Como você vê esse comportamento da "torcida"?

As pessoas se veem nesses programas. Elas não estão falando dos participantes, mas delas mesmas. Do que elas vivem no dia a dia. Isso tudo de ‘torcida’ não é tanto em relação aos participantes porque são pessoas que elas não conhecem, por mais que tenham visto no programa, não têm como mobilizar tantas paixões. Mas o que acontece e mobiliza as paixões é que as pessoas se colocam ali, começam a se ver através dos personagens e dos acontecimentos do programa, tornando bastante propício projetarem o que está dentro delas ali, no programa. Aquele que falou tal coisa passa a ser o vilão, aí vão projetar que tudo de ruim está naquela pessoa, que ela não vale nada, que tem que ser cancelada. As pessoas vão projetando o que é da vida delas, da família dela, dos lugares onde vivem e se relacionam através dos participantes. Os participantes desses reality shows acabam sendo depositários de todas as angústias, frustrações, mágoas, ressentimentos e desejos da audiência porque elas estão falando delas mesmas.