São Paulo, 01 (AE) - Baden Powell é, talvez, o maior violonista brasileiro. Inclui-se, ao menos, na linhagem dos maiores - de Garoto a Meira, seu professor, a Rafael Rabelo, também aluno de Meira e a Hélio Delmiro. Baden é tão fundamental para a história do violão popular que sua maestria foi definitiva na formação de músicos tão diferentes quanto os citados Rafael Rabelo e Hélio Delmiro. Rafael foi um chorão na linha clássica, cuja ascendência musical vai à escola vigorosa de Garoto e Dilermando Reis. Hélio Delmiro é um pós-bossanovista de pretensões jazzísticas que fez ferver o próprio amálgama. Baden era herói de um e de outro.
A Editora 34 está lançando uma completíssima (a primeira
aliás) biografia de Baden Powell, escrita pela jornalista francesa Dominique Dreyfus (384 páginas, R$ 29,00). "O Violão Vadio de Baden Powell" começa com o nascimento do músico, na pequena ciadade de Varre-e-Sai, no interior do Estado do Rio de Janeiro, no dia 6 de agosto de 1937, e chega ao dia em que se mudou, há menos de dois anos, para um apart-hotel, na Barra da Tijuca, Rio, deixando a mulher, os filhos e levando apenas o violão.
Baden conheceu a glória e a derrocada. Está, garante a autora, numa nova curva ascendente. Parou de beber - bebeu muito
a vida inteira - e de fumar, converteu-se a uma seita evangélica. Já não diz mais "saravá", quando canta o "Samba da Bênção", que escreveu com Vinícius de Morais. Substitui a palavra do candomblé por "bênção", que tem mais ou menos o mesmo sentido (é mais uma saudação, mas valha a aproximação). Saravá é coisa do diabo, acredita, hoje. "O Violão Vadio" que dá nome ao livro é título de um samba de Baden e Paulo César Pinheiro.
O trabalho minucioso de Dominique Dreyfus traz, em apêndice, musicografia, discografia selecionada, bibliografia e rica coleção iconográfica. Ela fez mais de cem entrevistas com parceiros, amigos, conhecidos do violonista. Deixou de lado pelo menos uma curiosiadade - talvez não tenha percebido o quanto é estranho que um lugar se chame Varre-e-Sai. Baden contou, uma vez: aquele pedaço de terra no Estado do Rio era rota de tropeiros. Havia uma casa grande e uma dona solitária que concedia aos viajantes - de graça - teto, água, permissão para acender fogo e fazer comida. Só havia uma cobrança: que se varresse tudo antes de sair. Os tropeiros passaram a referir-se ao pouso como Varre-e-Sai. Um dia, aposte-se, vai ser rebatizada de Baden Powell.
Dominique lembra que o pai de Baden, um boêmio que tocava tuba na banda da cidade, era violinista e sapateiro (criador de sapatos, não consertador de sapatos) , também chefe dos escoteiros, quis batizar o terceiro filho com o nome completo do fundador do escotismo: Robert Stephenson Smtyh Baden Powell. De Aquino, nome de família. Mas concluiu que ninguém chamaria o filho pelo nome: viraria Roberto, Beto, Betinho. Achou melhor resumir. Abolição - O avô de Baden era músico. Vicente Thomaz de Aquino foi o primerio maestro - era negro - formado do interior do Estado do Rio. E criou uma orquestra de negros que chegou a tocar no Teatro Municipal da capital. Era abolicionista, amigo de José do Patrocínio. Casou-se com uma índia. Quando Baden tinha três meses, a família mudou-se para o Rio de Janeiro - primeiro para Vila Isabel, depois para São Cristóvão. O pai de Baden era trabalhador, mas também boêmio. Conheceu, nas rodas de música da zona norte, alguns dos grandes da época - Geraldo Pereira, Sílvio Caldas, Luciano Perrone. Promovia saraus, em casa. Pixinguinha e Donga chegaram a comparecer.
Tudo isso serve para explicar o gosto pela música? Talvez. Serve mais para explicar o estilo de Baden. Ele é um chorão suburbano (e chorão toca samba, valsa, canção, choro até). Nunca foi um bossanovista, embora seu nome apareça, aqui e ali, associado ao movimento. Baden passou pela bossa como todos os músicos de sua geração - mas compondo sambas. Foi ele quem levou Vinícus de Morais a interessar-se pela cultura negra baiana - e não o contrário. Foi depois de pesquisas dele que nasceram os famosos e fabulosos afro-sambas. Vinícius continuou dizendo "saravá" até o fim da vida.
Aluno de Meira, Baden foi levado pelo mestre aos programas de calouros do rádio. Tinha 10 anos. O gênio precoce começava a profissionalização. O pai teve a sensibilidade de incentivar o filho. Em pouco, Baden largaria os estudos formais. Mas era um dedicado estudioso de música, que aos 11 anos já acompanhava Ciro Monteiro, ao violão, tocava trompete na banda do colégio, faltava às aulas e era desculpado (porque estava trabalhando, como músico). Facetas - Aspas para um parágrafo em que a autora resume o multifacetado talento: "...na adolescência, estavam se revelando as diferentes facetas da personalidade musical de Baden Powell e sua incrível versatilidade: o concertista que tocava Bach na igreja, o chorão confirmado que agora comandava as rodas de choro da casa, o guitarrista de jazz dos bailes do subúrbio, o moleque das rodas de samba dos morros".
Começou a compor para contornar a timidez e encantar as meninas. Adolescente, já sumia de casa - saía para voltar em poucas horas, encontrava alguém no caminho que o convidava para uma roda de samba distante, voltava dias depois. Esses sumiços foram constantes em sua vida. A música o chamava, ele ia. A boemia o chamava, ele ia. O Juizado de Menores acabou oficializando sua profissionalização, aos 15 anos. Tocava em clubes, boates, hotéis.
Frequentou o Beco das Garrafas e aparecia vez por outra na casa de Nara Leão, onde nascia a bossa nova. Mas não se engajou no movimento, como foi dito. Jamais gostou de turmas, panelas. Namorou Elisete Cardoso, começou a compor com Billy Blanco, que era casado com Dolores Duran. Sofreu desesperos, anunciou suicídio, quase morreu de beber. Recuperou-se sempre, recomeçou sempre.
Compôs maravilhas, de "Berimbau" a "Voltei", de "Choro para Metrônomo" a "Cidade Vazia", de "Formosa" a "Rosa Flor", de "Samba Triste" a "Violão Vadio, Violão Vagabundo" e "Samba em Prelúdio". Morou 20 anos na Europa, onde é mais respeitado do que aqui. Seus discos não estão disponíveis em CD no Brasil (salvo compilações nem sempre criteriosas).