A virada de ano já serviu de inspiração para muitos livros e contos assinados por escritores de variadas épocas e estilos. Algumas publicações focadas nesse período emblemático acabaram se tornando best seller. É o caso de “Feliz Ano Novo”, livro lançado em 1975 reunindo textos de Rubens Fonseca, e “Feliz Ano Velho”, romance de autoria de Marcelo Rubens Paiva lançado em 1982.

A convite da FOLHA, três autores paranaenses escreveram contos inéditos que trazem o Ano Novo como inspiração. Os textos que trazem à tona memórias afetivas, misturando realidade e ficção, foram escritos por Nilson Monteiro, Marco Fabiani e Chris Vianna.

Nascido em Presidente Bernardes (SP), em 1951, Nilson Monteiro morou em Londrina entre 1964 e 1986 e atualmente reside em Curitiba. É autor dos livros “Simples” (poesia), “Curitiba vista por um pé-vermelho” e “Pequena casa de jornal” (crônicas), “Itaipu, a luz e Ferroeste, um novo rumo para o Paraná” (reportagem) e “Madeira de lei” (biografia), entre outras obras. Formado em jornalismo, já trabalhou para a Folha de Londrina, O Estado de S. Paulo, Gazeta Mercantil e revista Istoé, entre outros veículos. É fundador e Membro Honorário da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina.

Além de escritor, Marco Fabiani também é médico cardiologista, formado em Londrina, na UEL, em 1980. Através da convivência com estudantes de diversas áreas, principalmente jornalistas, despertou o interesse pela literatura. É autor de vários livros, como “Trilhas do Fogo”, “Contos de Pau e Pedra”, “Histórias de Um Norte tão Velho”, “Um Bourbon para Faulkner” e “A memória é um pássaro sem luz”. É membro da Academia de Letras, Ciências e Artes de Londrina

Chris Vianna é professora, produtora e atriz. Idealizadora e diretora do Festival Literário de Londrina (Londrix) e da Vila Cultural Cemitério de Automóveis, atua como editora da Atrito Arte, com 145 títulos publicados. Em 2014, participou da Antologia de poesia feminina “O fio de Ariadne”. Em 2016 recebeu o Prêmio “Todos por um Brasil de Leitores” do Ministério da Cultura. Tem poemas publicados nos livros: “Um dedo de prosa” (2016/2019) e “Nòmadas” (2019).

BOM PRINCÍPIO

Nilson Monteiro
Nilson Monteiro | Foto: Divulgação

Menino nos meus seis anos, varei a manhã, como quase todos os meninos e meninas a desejar “bom princípio de Ano Novo” nas portas, janelas, calçadas, bares, armazéns, farmácias, quase todos os lugares, muitos para nos encherem de balas, pirulitos, docinhos caseiros, guloseimas e sonhos. Bom princípio.

Filho de um funcionário de farmácia, por sua vez filho de um açougueiro, e morador de casa de madeira com teto sem forro, entrei numa fila de dezenas de outros meninos e meninas, à espera da presença quase messiânica, natalina, roliça, risonha, do maior fazendeiro da minha cidade, à frente da mesma fila, cinto de fivela dourada, chapelão e bota com esporas também douradas. Crianças como pardais barulhentos. E, no início da fila, o fazendeiro, seus ajudantes de ordem, a distribuição do “bom princípio de Ano Novo”.

Nem sabia o valor daquela notona, nova, trincando, cinza (se a memória não amarelou), de 500 cruzeiros, que recebi das mãos do “doutor”, assim como as dezenas de crianças que se enfileiravam pelo cheiro verde e de bosta de vaca de sua fazenda quase dentro da cidade. Nem mesmo que, ao final daquele ano, um dólar (que só conheceria muito depois) valeria Cr$ 90,80, muito menos que minha nota cinza. A disparada só acabou em casa, voando.

Foram estalos para a compreensão de uma criança as perguntas enfileiradas que meu pai fez, sem respirar e sem deixar: quem te deu esse dinheiro/esmola (a lembrança trai), você sabe quem é a pessoa que te deu, por que você pegou, por que você foi àquele lugar, quem te ensinou a pegar dinheiro dos outros? Ufa! Sem esperar resposta, a emenda: volte ao lugar onde você pegou esse dinheiro, agradeça aquele senhor e devolva-o.

Muito, muito para quem só conseguira guloseimas como “bom princípio” e ganhara uma nota que daria para comprar sacos de guloseimas. Muito para quem teria que entrar novamente na fila para devolver. Mastiguei toda a raiva do mundo no caminho de volta ao cheiro verde e de bosta da fazenda.

Foi a primeira lição, a da dignidade, entre as muitas que me ensinou, ao longo de vários princípios, meios e fins de anos, meu pai.

Nilson Monteiro, jornalista e escritor

A ESPERA DO ANO BOM

Marco Fabiani
Marco Fabiani | Foto: Divulgação

Aqui nesse norte paranaense os dezembros são feitos de calor e pancadas de chuva à tardinha. Época que explodem as imagens, sabores e perfumes das doces farturas de mangueiras carregadas. Infância. A textura estranha e cheia de fiapos da manga espada, o sabor meio ácido da manga rosa e a mistura de odores das frutas caídas no chão. Os quintais cheirando terra molhada e um verde intenso marcando a vida. Calor, chuva e manga anunciam a despedida do ano velho. As frutas espalhadas na terra, as moscas, os insetos, o fluxo perpétuo da vida, sempre brota em meio à natureza miúda. As “grandezas do ínfimo”, poetiza o mestre Manoel de Barros.

Acho que o festim da natureza, que ao mesmo tempo desaparece e reaparece, destrói e reconstrói, espelha nossas almas que tanto necessitam da esperança e da renovação. O concreto e real dos ciclos naturais e o intangível mundo sensorial refletem-se. Talvez por isso cortamos o tecido contínuo do tempo para separar o antes e o depois. Por necessidade de olhar o que passou e tentar enxergar o porvir.

O ano novo! Uma certeza íntima de que vamos olhar pedras e, com a força da esperança, ver flores. Que a renovação perpétua das coisas do mundo, irrigadas pelo sentimento da esperança haverá de iluminar onde lógica e razão apontam trevas. A esperança é a negação da racionalidade. Ela brota na aridez, transformando desertos em quintais e mangueiras carregadas. Como as crianças das cidadezinhas do Brasil, que no dia primeiro de ano vão de casa em casa pedir prendas.

Gosto disso. E simbolicamente estendo minha mão a uma força maior, que sinto e não vejo e, modestamente, peço cheio de esperança: “Ei! Dá meu ano bom?”

Marco Fabiani, médico e escritor

LAY, LADY LAY, UMA BALADA QUE O TEMPO NÃO LEVA

Chris Vianna
Chris Vianna | Foto: Lírica Aragão/ Divulgação

Algumas verdades são escandalosamente certas para ela e para tantas outras. O gosto amargo das noites indormidas sela os dias. A mãe que não vem mais cobrir. A irmã na cidade luz. A sobrinha que não se vê há dois anos...

Estranhamente com a chegada do “ano novo” esse desejar por dias melhores perpassa o gosto do doce que azedou e é como se pudesse ouvir as sereias cantarem umas para outras como na canção de Eliot. Lembra de amores que teve. Do riso dos amigos. Pausa longa. Eu não sei dançar (é o que quase todos dizem), mas você já andou de bicicleta? Quase todos andaram. Então só mexe seu corpo juntoaomeu. E naquela passagem, eles dançaramdançaramdançaram, não perceberam os fogos, os sons ensurdecedores dos rojões. Não tinha mais amargo. Por um tempo ainda ouviam Boby Dylan, “Lay, lady, lay”. A música fora gravada várias vezes no pen drive.

Ela não recorda quem gravou, se ele ou ela. Pode ter sido ele. Pode ter sido ela. Quando se conheceram foi o gosto por Dylan que os aproximou. Isso ela lembra muito bem. E essa foi a trilha. Não sabe dizer quanto tempo ficaram, cabeça no ombro, os descompassos dos passos acompanhando as batidas do coração. Lay, lady, layLayladylayLayladylay. Pausa.

Alguns anos passaram, mas ela nunca esqueceu o cheiro do cabelo comprido e molhado, o arrepio na nuca, o transe do movimento LayladylayLayladylayLayladylay, e aquele silêncio ensurdecedor do amor que esteve entre eles. E já não sabiam se era meia-noite ou meio-dia. Se beberiam do orvalho antes da chegada da manhã. Se mergulhariam no mar Egeu. Se tristes ou felizes. Pausa.

10,09,09,07,06,05,04,03,02,01 e se foram os refrões, os ferimentos de poesia, já não buscavam refúgio em hotéis baratos. Cicatrizadas todas as dores enferrujadas se fizeram. Não houve espaço para mais nada além do encantamento. Estavam tatuados um no outro. Feliz Ano Novo, Lay, lady, lay

Chris Vianna, professora, produtora cultural e escritora

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. | Foto: Folha Arte