A personagem narradora de “Correntes”, o mais recente romance da escritora polonesa Olga Tokarczuk publicado no Brasil pela editora Todavia, possui uma doença chamada Síndrome de Detoxificação Perseverativa. A patologia é uma das radicais variantes da imaginária Síndrome do Mundo Cruel na qual o paciente “passa longas horas diante da televisão percorrendo todos os canais com o controle remoto até encontrar aqueles com as notícias mais terríveis: guerras, epidemias, acidentes e catástrofes”. Fascinado com aquilo que vê na televisão, o doente não consegue mais desgrudar os olhos da tela.

Nas palavras da personagem, seus particulares sintomas podem ser descritos da seguinte maneira: “Eu me sinto atraída por aquilo que poderia ser considerado quebrado, imperfeito, deficiente, roto. Interesso-me pelas formas indistintas, pelos erros na obra de criação, por becos sem saída. Por aquilo que deveria ter se desenvolvido, mas por algum motivo permaneceu imaturo. Ou pelo contrário, o que excedeu o planejamento inicial. Tudo o que não entra na norma, o que é pequeno ou grande demais, exuberante ou incompleto, monstruoso ou repugnante. Formas que não mantêm simetria, que se multiplicam, crescem para os lados, brotam, ou pelo contrário, reduzem a multiplicidade à unidade.”

Para dar vazão à sua patologia, a narradora se desloca incessantemente em viagens por lugares, situações ou estados mentais. Sempre levando em consideração que o próprio corpo humano deve ser considerado uma viagem em si.

.
. | Foto: Divulgação

Paralelamente aos relatos de viagens, a narradora insere historias, situações e episódios percorridos por anatomistas em diferentes épocas e lugares. Encara como uma viagem a busca pelo entendimento da forma e da estrutura do corpo humano. Elege a anatomia como uma viagem interna capaz de provocar sensações semelhantes as viagens pelo exterior, seja através de cidades ou continentes.

“Correntes” não possui a estrutura usual de um romance clássico. Fazendo uso da autoficção, Olga Tokarczuk constrói uma narrativa fragmentária formada por relatos, contos, comentários, histórias, impressões de viagem, ensaio e outras coisas mais. São 116 textos que aparentemente parecem isolados, mas com o andamento da leitura os fragmentos passam a ter uma coesão aos olhos do leitor apresentando um panorama da grande mobilidade contemporânea de informações e de corpos.

A percepção dos mecanismos da mobilidade contemporânea aparece sintetizada da seguinte forma: “Fluidez, mobilidade, ilusão. Essas são precisamente as qualidades que fazem de nós civilizados. Os bárbaros não viajam, eles simplesmente seguem para os seus destinos ou os invadem.”

A partir da distinção entre viajar para um lugar e invadir, ocupar ou dominar um lugar, a autora cria a psicologia de viagem, uma forma de entender o funcionamento do viajante do mundo atual: “Na psicologia de viagem, costuma-se dizer que a impressão da semelhança de dois lugares é diretamente proporcional à distância entre eles. Aquilo que está próximo parece distinto, estranho. A psicologia de viagem afirma que muitas vezes descobrimos as maiores semelhanças nos confins mais distantes do mundo.”

Como exemplo, vale citar um dos relatos presente em “Correntes”, o intitulado “O Coração de Chopin”. Nela a narradora apresenta a lenda segundo a qual, quando o compositor e pianista polonês Fryderyk Chopin morreu na cidade de Paris em 1849, deixou sob incumbência da irmã Ludwika seu último desejo: ser enterrado em seu país natal, a Polônia. Como isso não era possível, a irmã encontrou uma maneira alternativa de cumprir a vontade de Chopin. Antes sepultá-lo na França, Ludwika retirou o coração do irmão e o colocou num vidro com álcool.

Com o vidro embaixo da saia, amarrado entre as pernas, Ludwika empreendeu uma conturbada viagem com destino à capital polonesa, enfrentando todo tipo de atribulação para fugir de alfândegas, fiscais e policiais. Uma aventura que representaria a derradeira viagem realizada por Chopin, ou mais especificamente, por seu coração.

Autora de mais de 20 livros, Olga Tokarczuk ficou conhecida somente em 2019, quando recebeu com atraso o prêmio Nobel de Literatura relativo ao ano de 2018. Nascida em 1962 e graduada em Psicologia pela Universidade de Varsóvia, sua obra está pautada em ideias não convencionais e reflexões nada conservadoras.

Serviço:

“Correntes”

Autora – Olga Tokarczuk

Editora – Todavia

Tradução – Olga Baginska-Shinzato

Páginas – 402

Quanto – R$ 84,90 (papel) e R$ 54,90 (e-book)

Olga Tokarczuk constrói uma narrativa fragmentária formada por relatos, contos, comentários, histórias, impressões de viagem e ensaios
Olga Tokarczuk constrói uma narrativa fragmentária formada por relatos, contos, comentários, histórias, impressões de viagem e ensaios | Foto: Jacek Kolodziejski/ Divulgação

...

Receba nossas notícias direto no seu celular, envie, também, suas fotos para a seção 'A cidade fala'. Adicione o WhatsApp da FOLHA por meio do número (43) 99869-0068 ou pelo link wa.me/message/6WMTNSJARGMLL1.