Quase uma semana após os atos extremistas que aconteceram em Brasília no último domingo (08), especialistas ainda tentam fazer as contas numa tentativa de dar a frieza dos números para algo que chocou até quem estava esperando reações dos que ainda não aceitaram que o Brasil tem um novo governo.

Ao vivo, os brasileiros assistiram a atos de violência contra o patrimônio público, num claro ataque à nossa jovem democracia.

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Vários bustos de personalidades históricas e políticas  foram danificados
Vários bustos de personalidades históricas e políticas foram danificados | Foto: Carl de Souza/ AFP

Na contagem dos danos, aqueles ao acervo de obras de arte presente nos três prédios atacados pelos extremistas. Algumas com um valor no mercado, outras com uma cifra impossível de ser calculada. O governo agiu rápido e os processos de restauração e avaliação técnica dos estragos começaram no dia seguinte e assim, terminamos a

semana sabendo que pelo menos a obra "Bailarina", de Victor Brecheret já voltou para o seu lugar na Câmara dos Deputados, depois de ter sido arrancada do pedestal e jogada no chão como se fosse um inútil pedaço de metal, sem valor algum. A escultura, realizada na fase parisiense de Brecheret, considerado um dos percursores do modernismo no Brasil, explora a delicadeza do feminino. A delicadeza que passou muito longe do que vimos nos atos que espalharam o terror pela Praça dos Três Poderes.

A pintura “As Mulatas” de Di Cavalcanti, no Salão Nobre do terceiro andar do Palácio do Planalto, talvez seja o maior símbolo da barbárie contra as obras de arte, mobiliários assinados e a arquitetura dos prédios reconhecidos como Patrimônio Mundial pela Organização das Nações Unidas. A peça foi perfurada em sete pontos diferentes. De acordo com o governo, o seu valor é estimado em R$ 8 milhões, mas ao longo da semana, chegou a valer R$ 20 milhões, preço colocado pelo diretor da casa de leilões Bolsa de Arte, Jones Bergamin, pois a obra, além de rara, é a representação

de um País e a de maior valor histórico entre as peças vandalizadas.

Obra de Frans Kracjberg, feita com galhos, teve pedaços arrancados
Obra de Frans Kracjberg, feita com galhos, teve pedaços arrancados | Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agênc

De acordo com a Agência Brasil, ainda no Palácio do Planalto, o prejuízo cresce com os danos causados às obras "O Flautista", de Bruno Giorgi, uma escultura em bronze completamente destruída e avaliada em R$ 250 mil; à escultura de parede em madeira de Frans Krajcberg, quebrada em diversos pontos com um valor estimado de R$ 300 mil. A obra

“Bandeira do Brasil”, de Jorge Eduardo, avaliada em R$ 100 mil foi encontrada boiando.

O relógio de Balthazar Martinot, do século 17, foi destruído a pauladas, a restauração é praticamente impossível
O relógio de Balthazar Martinot, do século 17, foi destruído a pauladas, a restauração é praticamente impossível | Foto: Fátima Meira/Futura Press/Folhapress

Entre outras obras vandalizadas e ainda sem preço, os danos à obra “Vênus Apocalíptica”, da argentina Marta Minujín, encontrada do lado de fora do Palácio do Planalto, o retrato de José Bonifácio onde desenharam um bigodinho no personagem com uma caneta, os estragos na mesa de trabalho de Juscelino Kubitscheck usada como barricada, a mesa-vitrine de Sérgio Rodrigues que teve o vidro quebrado e o relógio de Balthazar Martinot, do século 17, completamente destruído pelos invasores e de restauração praticamente impossível, de acordo com o próprio diretor de Curadoria dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho.

Na Congresso, a selvageria danificou o vitral "Araguaia", da artista plástica Marianne Peretti, com pichações. Na Galeria de Presentes de governos estrangeiros, diversos objetos foram quebrados ou roubados: vasos, ovos de avestruz e estátuas, uma chinesa em especial chegou a ser arremessada contra os vidros e ficou completamente destruída e os extremistas tomaram o cuidado de urinar em um tapete assinado por Burle Marx.

No Senado, os prejuízos estão estimados entre 3 e 4 milhões de reais, com danos a móveis históricos referentes à

segunda sede do Senado Federal, no Palácio Monroe, no Rio de Janeiro. Já se descarta a restauração de algumas peças, extremamente danificadas. A lista não termina: avariado também um painéis de Athos Bulcão na Câmara dos Deputados e no Senado, pinturas e objetos históricos, como o tinteiro de bronze da época do Império . No Supremo Tribunal Federal, a escultura em granito “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti, localizada em frente ao prédio do tribunal foi vandalizada com a frase “Perdeu, Mané”, a peça é avaliada entre 2 e 3 milhões de reais.

As cadeiras utilizadas pelos ministros, assinadas por Jorge Zalszupin, arquiteto e designer polonês naturalizado brasileiro; o crucifixo e o Brasão da República que ficam no plenário do STF também sofreram a ação dos vândalos. Sem a devida proteção, o acervo de mais de 700 peças ficou à mercê dos terroristas, protagonistas de um ataque à história, arte e cultura brasileira. Já no dia seguinte à depredação, o Governo convocou restauradores de obras de arte de todo o país para recuperar itens danificados com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) à frente dos trabalhos de restauração.

Especialistas inspecionam estragos na obra "Anjo", de Alfredo Ceschiatti
Especialistas inspecionam estragos na obra "Anjo", de Alfredo Ceschiatti | Foto: Pedro França/Agência Senado

PARA PESQUISADOR, O ACONTECIMENTO GRAVE SERVE À REFLEXÃO

Para o Danillo Villa, professor do departamento de Artes Visuais da Universidade Estadual de Londrina (UEL), as ações violentas provocaram uma estranha sensação, como se tudo ficasse suspenso, gerando uma insegurança generalizada. “O que ainda está por vir?”, questiona. “O mal-estar persiste”, afirma, mesmo com a certeza de que tudo pode ser recuperado e restaurado. “Essas peças se tornaram uma testemunha da história, do acontecido. Eu já fiz a restauração de um trabalho danificado por um ato violento e isso faz do objeto artístico um documento sobre os acontecimentos, uma presença viva e ativa. Obras de arte são agredidas porque são testemunhas de um ideário e o agressor quer destruir as ideias e quem essas ideias representam. Daí a gravidade de tudo o que aconteceu”, comenta.

Doutor em Poéticas Visuais pela ECA- USP e chefe da Divisão de Artes Plásticas da UEL, Villa acredita na capacidade plena dos restauradores no Brasil. “Temos técnicos, pesquisadores, estudiosos e especialistas em restauro, profissionais muito capacitados nos museus e em formação”, comenta.

A violência sofrida pelo acervo nos prédios da Praça dos Três Poderes também representa uma oportunidade de repensar o que estamos fazendo, enquanto povo brasileiro, da representação artística da nossa própria história. “É uma chance de

revisarmos os modos como esse acervo foi constituído, de onde vieram as peças, quem fez a doação, as relações que resultam na presença de um trabalho em um acervo. Todo um sistema de documentação desencadeando uma complexa

investigação a partir também das ausências. Há uma série de saberes que podem ser acionados em uma complexidade crescente. Quem rouba, danifica, vandaliza uma obra de arte faz isso com a nossa história, com o que poderíamos saber da nossa própria cultura”, analisa Villa.

Na opinião do pesquisador, as ações em Brasília do último domingo apresentam a intenção pura e simples da destruição. “Baseada na necessidade de mostrar que aquele símbolo, aquela instituição e tudo o que representam, não deveriam existir”.

Os ataques às obras de arte também podem ser entendidos como atos motivados por um “recalque”, continua. “É um ataque ao outro, ao o que ele produz e entende como interessante, seus símbolos, seus locais de sacralização de valores. Há uma mensagem de que aquele valor tem que ser destruído para ser sobreposto por outros”.

Tentar destruir uma expressão artística, faz todo sentido quando se compreende que a arte é uma ameaça porque abre possibilidades de expressão e reflexão, sobre motivações individuais, de um grupo, de um momento histórico. “A arte, a cultura de uma maneira geral, representa, deixa registros e vestígios dos nossos anseios mais íntimos, da maneira como nos relacionamos com o mundo, com o próximo, com o nosso corpo e amores”, comenta e sugere que o acontecido possa abrir a possibilidade para uma renovação do próprio acervo artístico dos Três Poderes. “Sem querer minimizar a gravidade dos acontecimentos, há uma chance de abrirmos para a produção contemporânea, pensando que aquele espaço é uma vitrine e pode mostrar o que estamos vivendo agora. Quando uma obra é fixada em uma parede, o espaço ganha

aspectos de museu, e por isso mesmo, existe a necessidades de uma revisão permanente que inclua o que as pessoas estão pensando e vivendo assim como os ideais pelos quais estão lutando. O que aconteceu em Brasília foi muito danoso, mas abre para uma discussão ampla de como lidamos com a arte no Brasil. Uma chance de revermos como observarmos, cuidamos e tratamos a nossa história", diz.

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