'Ataque dos Cães': as toxinas do macho alfa
Machismo, repressão e vingança, as chaves de “The Power of the Dog”, - "Ataque dos Cães" na versão brasileira - traz Benedict Cumberbach com talento equiparável ao do agora aposentado Daniel Day-Lewis
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quinta-feira, 09 de dezembro de 2021
Machismo, repressão e vingança, as chaves de “The Power of the Dog”, - "Ataque dos Cães" na versão brasileira - traz Benedict Cumberbach com talento equiparável ao do agora aposentado Daniel Day-Lewis
Carlos Eduardo Lourenço Jorge
James Hoberman, um dos grandes da crítica e do pensamento cinematográfico dos Estados Unidos, escreveu que o western sempre foi “o mais idílico dos sistemas homossociais”. Na ausência das mulheres, quase sempre relegadas à espera no espaço doméstico, o homem do western entendia a violência como a forma mais natural, ratificada por seus companheiros, para reafirmar sua masculinidade. O que acontece quando essa violência é sublimada para camuflar a diferença de orientação sexual? O que acontece quando a amizade, a camaradagem, a idealização de mentores e irmãos, as provas de honra que são provas de virilidade, quando o medo e a repulsa diante do sexo oposto escondem o maior pecado mortal para a masculinidade – agora tóxica, do western?
Apoiando-se no romance homônimo de Thomas Savage, Jane Campion colocou essas questões não para desconstruir um gênero cinematográfico – ela defende que "The Power of the Dog"; é um concerto de câmera. É lícito afirmar mais, que é sim um filme de câmera singular e sinistro, que poderia ter sido assinado pelo mais cruel Rainer Fassbinder – mas para refletir sobre a identidade de um arquétipo icônico, que transformou seus desejos reprimidos em um tsunami de amargura que tudo devasta.
Assim, Phil Burbank, que Benedict Cumberbatch personifica com uma mistura de inteligência, rancor, desprezo misantrópico e vulnerabilidade verdadeiramente majestosa, é, para Campion, o veículo de uma psicologia contraditória. Que é, em si mesma, a imagem escarrada dos mistérios do desejo. Estamos mais próximos de “O Piano” do que parece, embora naquela sua Palma de Ouro de 1993 a masculinidade brutal fosse dividida entre a civilização patriarcal e o atavismo sensual - e a trilha músical de Michael Nyman embelezou demais o que aqui e agora a excelente banda de Jonny Greenwood transformou em abstrato e perturbador.
“The Power of the Dog”. primeiro longa metragem de Jane Campion em 12 anos (disponível apenas no catálogo Netflix), se coloca como mais uma espécie de marco na carreira da cineasta nascida em 1954 em Wellington, Nova Zelândia: ele é seu primeiro filme em que o papel principal é assumido por um homem. Um tipo de homem, aliás, que incorpora muitos dos traços mais questionados nos tempos que correm.
Nas montanhas de Montana, em 1925, Phil Burbank (Cumberbatch) possui uma grande fazenda onde treina cavalos e cria gado com seu irmão, George (Jesse Plemons). O homem toma as rédeas do negócio e de sua vida com um machismo recalcitrante típico de sua época e repudia tudo que lhe escapa ao controle; assim, o pior de seu caráter é desencadeado quando dois estranhos entram em sua casa: Rose (Kirsten Dunst), uma viúva que acaba de seu casar com seu irmão George, e seu filho dela, o jovem adulto Peter (Kodi Smit-McPhee).
Campion, também autora do roteiro – adaptação do romance homônimo de 1967 do americano Thomas Savage –, captura em detalhes a tensão entre os irmãos, exacerbada pela chegada dos novos habitantes do lugar, e principalmente as complexidades e as sombras do irado Phil. Sobre o título original, “O Poder do Cão”, empobrecido em sua “tradução” absurda no Brasil (“Ataque dos Cães”), a diretora Campion explicou em coletiva no recenre Festival de Veneza, de onde saiu justamente com o prêmio de melhor direção: “O poder do cão são todos aqueles impulsos profundos e incontroláveis que podem chegar e nos destruir. Até Donald Trump tem dificuldade em manter sua poderosa fachada masculina. Por exemplo, quando as coisas não estavam indo bem para ele, ele desmoronou. Ele não conseguia nem dizer a palavra "perdi”, disse ela. Mais adiante, ela refletiu sobre esse ponto: "O estilo de masculinidade de Phil, e o espírito de masculinidade que é anunciado no mundo dos jeans, é muito romantizado.
A segunda parte do filme, em que Campion aposta mais abertamente no western “queer”, é de nível ainda mais alto. Muito alto. No desejo entendido como jogo de poder, que troca papéis entre senhor e escravo, entre dominante e submisso, rompem-se os estereótipos da masculinidade codificada. Os interiores e os exteriores, as típicas paisagens abertas do gênero tornam-se nefastas e ameaçadoras, e a relação entre Phil e Peter (um assombrado, magnético Kodi Smit-McPhee, ator australiano) oscila entre a fragilidade que uma atração trêmula provoca e a intensidade fria e calculada da vingança do forte que parece fraco.
Embora alguns estejam tentando ligar as coisas, "The Power of the Dog" não participa do romance crepuscular de "Brokeback Mountain": é um filme duro, trágico, terrível e venenoso sobre um amor que não pode se manifestar como tal. (Nunca se deve perder de vista a lição de um ator. Cumberbatch e seus gestos ásperos e severos influenciam integralmente o tom do filme, que não faz concessões. E a inteligência com que Jane Campion desconstrói uma idéia de masculinidade (auto) destrutiva. Com o deslumbrante apoio de Cumberbach, digno sucessor de Day-Lewis.)
Como o diretor Paul Thomas Anderson (aguardem dele para breve “Licorice Pizza”) fez em “Sangue Negro” (2007), Campion oferece, principalmente na segunda metade do filme, a possibilidade de um vínculo com Phil, esse homem desprezível, abrindo sua vulnerabilidade. Não é uma abertura fácil, pois se dá por meio de uma relação quase sadomasoquista com Peter, reflexo de tudo que, aparentemente, Phil detesta sobre o mesmo sexo e, secretamente, o atrai mais.
À medida que essa relação se consolida, esse faroeste que nada tem a ver com o romantismo lacônico de "Brokeback Mountain", torna-se cada vez mais duro e abstrato, como se os interiores sombrios do rancho onde a misantropia de seu protagonista irá espalhar medo e tremor pelos grandes espaços que não são mais de conquista, mas de terror. É aqui que Campion se sente em casa: nos esquivos mistérios do desejo, reunindo dois homens que parecem estar fora do mundo, falando uma linguagem secreta que cheira a morte, tão extraterrestre e sugestiva quanto a trilha sonora dissonante de Greenwood. Que envolve em estranheza as imagens deste filme extraordinário.