As cartas de Carlos e Mário
PUBLICAÇÃO
terça-feira, 21 de janeiro de 2003
Beatriz Coelho Silva<br> Agência Estado
As 161 cartas que o poeta Carlos Drummond de Andrade e o escritor Mário de Andrade trocaram ao longo de 20 anos estão no livro ''Carlos & Mário'', que será lançado hoje na Casa de Ruy Barbosa, no Rio, pela Editora Bem-Te-Vi, recém-criada para reavivar a memória brasileira e que, no mês passado, reeditou o ''Arquivinho de Vinícius de Moraes''. A correspondência de Mário não é inédita, o próprio Drummond a editou em 1982, com notas e comentários, mas o que o poeta escreveu só vem a público agora e revela o carinho e a admiração entre duas pessoas fundamentais à nossa cultura, embora contraditórias e contrárias em muitos pontos.
''Os dois se conheceram em Belo Horizonte, em 1924. Drummond era estudante de farmácia e, com outros amigos, como Pedro Nava, acadêmico de medicina, encantou-se com a sofisticação e a erudição da trupe modernista, que tinha Mário e Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e poeta francês Blaise Cendrars'', conta a organizadora do livro, Lélia Coelho Frota. ''Drummond mandou a primeira carta e Mário deu uma resposta torrencial, como era seu estilo. Até 1945, quando Mário morreu, eles se corresponderam e o livro mostra a evolução pessoal, intelectual e política dos dois. Drummond confessa ser Mário sua maior e mais importante influência intelectual, mas manteve suas características. Assimilou o que o amigo lhe trouxe, mas manteve seus princípios literários.''
Ambos foram grandes missivistas, corresponderam-se com quase todos os artistas e intelectuais do século 20, mas guardavam diferenças nessa escrita. O autor de ''Macunaíma'' tratava seus interlocutores como discípulos queridos, com quem discutia arte, filosofia, política e até suas obras, com um rigor que chegava à crueza, se lhes notasse falta de empenho. Drummond era informal, falava da família, dos anseios pessoais e dos casos corriqueiros. No diálogo, o poeta repensa sua arte enquanto o ensaísta adoça a formalidade e o leitor de ambos conhece um pouco mais de cada um e dos meandros da cultura brasileira.
Além disso, entendemos como funcionou a relação entre duas personalidades tão distintas. Combativo e inquieto, Mário de Andrade foi um guru de seu tempo e lançou idéias que até hoje são aplicadas como inovação. Foi um dos primeiros intelectuais a sair pelo Brasil para mapear nossa cultura popular, ajudou a elaborar o conceito de patrimônio artístico construído e imaterial (hoje tão em voga) e sabia conjugar essa produção intelectual com vida boêmia e uma atividade política que o levou praticamente ao ostracismo no Estado Novo.
Drummond era o oposto, embora não menos instigante. Burocrata e poeta, apaixonado e amargo, progressista e funcionário da ditadura de Getúlio Vargas, sabia equilibrar-se dentro de um governo conservador e trazer colaboradores como Lúcio Costa, Sérgio Buarque de Hollanda, Rodrigo de Mello Franco e outros intelectuais que pensaram o Brasil no século 20. Mário estava entre eles, mas nem sempre porque morou em São Paulo boa parte de sua vida e também porque foi opositor ferrenho do Estado Novo. Em suas cartas, Drummond ainda expõe sua vida familiar - fala da alegria do nascimento e do sofrimento com a morte de seu primeiro filho, Carlos Flávio - e seus sonhos de jovem recém-formado, o que ajuda a entender a poesia que vem depois.
Segundo Lélia, no decorrer dos 20 anos, a posição entre os dois se alterna. A admiração é mútua, mas nos anos 40, Mário reconhece a importância de Drummond e o coloca entre os maiores da língua portuguesa, enquanto este lamenta que os versos do autor de ''Lira Paulistana'' tenham sido suplantados por seus ensaios. Hoje, Drummond é o poeta brasileiro mais conhecido. Qualquer pessoa, de qualquer idade ou classe social, conhece ao menos um verso seu. Mário é cultuado nos meios acadêmicos, mas sua obra não é popular. ''A força da poesia de Drummond é inegável e ensaios têm um público mais restrito'', justifica Lélia. ''Mas assistir à troca de idéia de ambos é sempre enriquecedor.''
Serviço: ''Carlos & Mário'' terá 500 exemplares distribuídos em bibliotecas e universidade e 2.500 nas livrarias e custa R$ 166.
Hoje, excepcionalmente, deixamos de publicar a coluna ''Leiturinha'' de Marcos Losnak.

