Artistas do século 19 constroem imagem do Brasil
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quinta-feira, 20 de abril de 2000
Por Maria Hirszman
São Paulo, 21 (AE) - É no século 19 que é cunhada a imagem que temos hoje da história do Brasil. Com a declaração da Independência, em 1822, tornou-se necessário determinar as novas feições do País nascente e esse esforço de cunhar uma nova identidade se faz presente não apenas nos discursos políticos, jornais e documentos históricos, mas também de forma muitas vezes explícita nas ditas belas artes.
É essa ligação íntima entre arte e sociedade que está na base da curadoria feita pelo professor Luciano Migliaccio para o módulo dedicado à arte do século passado. Segundo o historiador italiano, a tarefa de construir "a imagem do novo estado, herdeiro do reino católico e da vocação oceânica de Portugal, destinado a ser grande potência, é confiada aos integrantes da Missão Artística Francesa, que chega ao País em 1816."
Desta forma, artistas como Debret e Nicolas-Antoine Taunay acabam por contribuir com a invenção do Brasil. Os artistas brasileiros também bebem na mesma fonte - a academia francesa - para criar esse novo ideal de potência americana.
"Até D. Pedro I, existiam ambições de grande potência, mas como parte do Império Português", explica. "Mas quando o Brasil se torna independente, adquire consciência de que é um novo País, dentro de um contexto novo, americano, mas que se sabe herdeiro da cultura européia", resume.
Uma das marcas essenciais dessa busca de um destino grandioso, baseado numa suposta convivência pacífica entre europeus, índios e negros, está na idealização da natureza. Em obras como "A Moema", de Vítor Meireles, é possível identificar claramente o desejo de criar uma história nativa, valorizando de forma romântica a imagem do índio herói e da heroína trágica.
O fato de Félix-Émile Taunay (filho de Nicolas-Antoine Taunay) ter sido diretor da Academia Imperial de Belas Artes é, segundo Migliaccio, mais um indicativo da importância da natureza no contexto brasileiro. "É no mínimo curioso que tenha sido um paisagista escolhido para dirigir a Academia, quando na Europa o cargo sempre foi desempenhado por um arquiteto ou um pintor de temas históricos."
Precursor ecológico - Aliás, é de Félix-Émile Taunay uma obra simbólica da exposição, que já naquela época denunciava o impressionante contraste entre abundância e destruição da paisagem brasileira. Em "Floresta Reduzida a Carvão", o pintor francês retrata de um lado a frondosa floresta nativa e do outro a destruição em larga escala de gigantescas árvores. Há também na mostra exemplos de obras de cunho propagandístico, como a tela "A Passagem de Humaitá, também de Vítor Meireles, feita para a marinha para comemorar a vitória na Guerra do Paraguai.
Outra característica interessante desta exposição é que ela mostra mais uma vez que a arte acadêmica do século passado vem sendo olhada com outros olhos pela crítica. Migliaccio diz que o olhar em relação ao século 19 vem mudando desde a década de 80 e contribuiu fortemente para isso a inauguração do Museu de Orsay, em Paris, que abriu espaço para a arte dita Pompier, que foi alvo de tantas críticas por parte dos modernistas. Felizmente, para o público, se está abrindo cada vez mais espaço para que se possam admirar trabalhos daquele período.
Infelizmente, a disputa por iconografias brasileiras do período da comemorações não permitiu que o módulo da Arte do Século 19 conseguisse reunir todas as obras ambicionadas por seu curador. Além de ter alguns desses trabalhos exibidos no mesmo prédio, mas em outro módulo - o do Olhar Distante - Migliaccio ficou extremamente frustado por não ter conseguido trazer para a Bienal "A Primeira Missa no Brasil", de Vítor Meireles, levada pelo governo para as festividades na Bahia.
"Essa obra traduz a visão que a corte de D. Pedro II queria passar do Descobrimento do Brasil e foi transformada em fetiche, ao invés de ter sido colocada no lugar certo, onde pudesse contribuir para a reflexão sobre o Brasil a partir da arte", diz o especialista italiano, que vive no Brasil há cinco anos.