Estranhamento, incômodo e também nostalgia. A campanha publicitária em que a Volkswagen celebra seus 70 anos no Brasil unindo, por meio de Inteligência Artificial a cantora Elis Regina (falecida em 19 de janeiro de 1982) e sua filha Maria Rita, repercute desde o seu lançamento, na primeira semana de julho. O vídeo começa com Maria Rita conduzindo uma ID.Buzz – versão moderna e 100% elétrica da Kombi – enquanto canta o clássico de Belchior "Como nossos pais", eternizado na voz de Elis, na década de 1970.

LEIA MAIS:

Filho de Elis fala do anúncio em que a mãe aparece através de Inteligência Artificial

Brasileiro usa a inteligência artificial para mostrar a passagem do tempo no rosto de famosos

Londrina recebe mostra com cópias restauradas dos filmes de Godard

Há quem tenha se chocado com a voz e a imagem de Elis e quem tenha se encantado diante do dueto. A proposta da montadora, além de homenagear um sucesso que ultrapassa décadas é a intergeracionalidade, dando destaque ao fato de a Kombi estar de volta. A Volkswagen confirmou um lote limitado de 70 unidades da versão 100% elétrica ID. Buzz para o Brasil. A peça publicitária continua com imagens de carros da empresa que marcaram gerações, como Fusca e Brasília. Até que surge uma Kombi antiga, conduzida por Elis Regina, que emparelha com o carro de Maria Rita e forma o dueto.

Anúncio que reúne Elis Regina, falecida em 1982, e a filha Maria Rita  através de inteligência artificial  causa polêmica desde o seu lançamento
Anúncio que reúne Elis Regina, falecida em 1982, e a filha Maria Rita através de inteligência artificial causa polêmica desde o seu lançamento | Foto: Yuri Murakami/ Foto Arena/ Folhapress

Do ponto de vista do violeiro e compositor Paulo Freire - filho do psicanalista e escritor Roberto Freire (1927-2008) - trata-se de um tema passível de discussão. "Não se trata apenas de Elis e Belchior. Deem uma escutada na versão original do compositor. Com todo respeito imenso que tenho por ele, vejam a diferença. Vocês acham que toda a potência com que a Elis canta essa música é só por causa dela? Não! Reparem no arranjo, na atuação de cada músico." Ele destaca os artistas presentes na canção: "César Camargo Mariano (arranjo e teclados), Natan Marques (violão de 12), Crispin Del Cistia (guitarra), Nenê (bateria), Wilson Gomes (baixo)". O que vai além da incrível performance de Elis. Acerca dos direitos autorais pontua: "Nesses tempos de Inteligência Artificial e plataformas, não se dá o devido crédito aos criadores".

Sobre a escolha da música e seu sentido, ele também observa: "O comercial é uma afronta e, com a edição, a letra muda de sentido. Puxa daqui, tira dali, pronto: o que o Belchior quis dizer, e o que a Elis e o grupo jogam na nossa cara, vai tudo pro saco. Não acredito que seja uma letra de difícil compreensão. Claro, tem várias camadas, mas o simples é escancarado. Escuta ali. O comercial afronta porque deturpar o sentido da canção é um desrespeito com todos aqueles para quem a essa música despertou emoções extraordinárias em vários momentos preciosos da vida.

Para Paulo Freire, violeiro e compositor, anúncio distorce o sentido da letra de "Como nossos pais"
Para Paulo Freire, violeiro e compositor, anúncio distorce o sentido da letra de "Como nossos pais" | Foto: Isabela Senatore/Divulgação


Resumindo, não se trata de semelhanças e harmonia de gerações, como o anúncio sugere, trata-se de conflitos.

O próprio Belchior, em entrevista em 1996, ao programa Nossa Língua Portuguesa, apresentado pelo professor Pasquale Cipro Neto, que fala sobre "a pena, a dor e a constatação de que não gostaríamos que assim fosse". O real significado de "Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais", é uma exposição dos conflitos de gerações e uma constatação das falhas que filhos cometem e repetem - como os pais. Embora a vontade seja ser diferentes daquilo.

Sobre o uso da Inteligência Artificial, Paulo Freire ainda opina: "Podem ter casos muito distintos. Mas como também sou filho de gente grande, fico imaginando como seria para nós, herdeiros da obra do escritor Roberto Freire, uma ação desse tipo, ao chegar uma proposta de aproveitar algum texto dele, alguma ação que fez em vida, e modificar para um rumo qualquer, para fazer um comercial, acho que tem limites. Talvez se fosse um trecho de algo para o qual ele não desse muita bola e que significasse algum conforto especial para os filhos, ele deixaria. Incomodado, claro.

Mas se fosse algo que ele achasse fundamental, importante, e a gente concordasse em modificar o sentido, traindo (ele usaria esta palavra) suas convicções, ele voltaria. Sim, voltaria não sei de onde. E no caso não seria para puxar nossos pés durante a noite, mas arrancar nossos olhos," conclui.

Anúncio da Volkswagen feito com Inteligência Artificial que reúne Elis Regina e Maria Rita

BLACK MIRROR

A atriz e cantora londrinense Simone Mazzer também é reconhecida por interpretar de modo distinto Elis Regina. Mazzer admite que ficou chocada com a campanha. "Ainda tenho muito a pesquisar e estudar sobre Inteligência Artificial no audiovisual e isso já vem acontecendo há um tempo e vem tomando uma proporção de modo que, daqui cinco anos, vai estar mais invasivo no sentido de usar e abusar da imagem das pessoas."

Simone Mazzer, atriz e cantora:"Fiquei chocada, é como se eu estivesse dentro de uma série como Black Mirror"
Simone Mazzer, atriz e cantora:"Fiquei chocada, é como se eu estivesse dentro de uma série como Black Mirror" | Foto: Hoana Bonito/Divulgacao

Sem entrar na seara do juízo de valores, Mazzer ratifica a sua preocupação: "Eu respeito a decisão e a atitude da família, é um direito deles. Embora eu seja a favor da tecnologia, principalmente em relação aos avanços da ciência, me preocupo porque um artista se prepara, estuda, investe em aprimoramento e de repente vão começar a pipocar 'pessoas' criadas no lugar de quem poderia estar trabalhando."

Ela ainda vai mais longe: "Eu não me sinto confortável com isso. Sou atriz, cantora e é muito difícil aceitar a ideia de que uma IA projetada por um homem adquiriu esses poderes de cópia, de clone. Isso é muito esquisito e por isso muitos artistas já estão deixando por escrito a vontade de não ter sua imagem e voz usadas assim e eu sou desse bonde. Embora a campanha traga uma estética linda, foi um comercial bem produzido, fiquei em estado de choque quando vi Elis Regina. Isso me incomoda, era como se eu estivesse dentro de uma série como Black Mirror", revela.

Hylea Ferraz, musicista e produtora cultural: "Sou a favor do uso ético e responsável da tecnologia"
Hylea Ferraz, musicista e produtora cultural: "Sou a favor do uso ético e responsável da tecnologia" | Foto: Carmem Kley/ Divulgação

Para a musicista e produtora cultural Hylea Ferraz, deve haver uma reflexão, sim. "Para mim ainda é é difícil opinar sobre a IA, mas sou a favor do uso ético e responsável da tecnologia. Quanto a ressuscitar cantores, prefiro os vídeos originais. O que já passou, passou. Tanta gente boa surgindo e sem chances de mostrar seus trabalhos e por isso mesmo eu sou a favor de olhar pra frente", ratifica.

A QUESTÃO DA DITADURA

Já a cantora londrinense Camila Taari tem uma opinião crítica, mas um pouco diferente. "Achei a polêmica toda superestimada. Talvez o que tenha me incomodado mais foi o fato da empresa ter apoiado a ditadura, tendo Elis passado por toda aquela questão na época. Mas são novos tempos, Maria Rita é uma mulher muito inteligente, não faria essa parceria se não sentisse que seria legal. Em relação ao uso da Inteligência Artificial, ao meu ver, não recriaram Elis. Aquilo é uma animação, uma projeção, uma ideia de como seria a experiência da filha de viver esse momento com a mãe, cantando, dirigindo, curtindo. Já estão fazendo shows com hologramas há muito tempo e não notei toda essa polêmica, o que senti foi exatamente isso. Eu gostaria de viver esse momento com minha mãe, que já faleceu e foi cantora, mesmo que fosse uma suposição, uma ideia, um sonho distante."

Camila Taari, cantora: "O que me incomoda mais foi o fato da empresa ter apoiado a ditadura"
Camila Taari, cantora: "O que me incomoda mais foi o fato da empresa ter apoiado a ditadura" | Foto: Carolinaa Sanches/ Divulgação