Arnaldo Jabor
PUBLICAÇÃO
segunda-feira, 27 de outubro de 1997
Arquivo FolhaCena de Pulp Fiction, de Quentin TarantinoUm dos perigos atuais é o neoliberalismo na cultura. Assim como a derrota do socialismo está criando um mundo sem travas à injustiça social, acabando com a solidariedade e chamando pobres de incompetentes ou vagabundos, também na cultura há um grilo no ar.
Sente-se isso na arrogância com que a arte industrial mata seus últimos laços de amor com as aspirações estéticas sérias. Nos filmes de Hollywood, acabou a época em que os realizadores ainda davam barretadas à arte da Europa. Antes, importavam diretores da Alemanha e França para vitalizar o cinema nascendo em LA. Assim, vieram nomes como Billy Wilder, Stroheim, Renoir, William Dieterle, Michel Curtis, Fritz Lang. Até pouco tempo, alguns cineastas americanos tinham fascínio por climas densos, como eles imaginavam que era a arte européia. Geralmente, esses filmes ficavam ridículos, como o Prêt-à-Porter de Robert Altman ou coisas estranhas como a Insustentável Leveza do Ser, de Phillip Kaufman. Era patético ver os comedores de cachorro quente falando do Ser ou do Nada. Mas, até isso acabou. O estranho amor que Woody Allen tinha por Bergman terminou, (aliás, graças a Deus) e o nosso cômico voltou a ser profundo sendo superficial, com oótimo Mighty Aphrodite ou Bullets over Broadway. Por outro lado, com a morte do Absoluto europeu, os ideólogos do mercado estão eufóricos. A expressão eurocentrismo passou a ser um xingamento. Sumiu no Ocidente a veleidade de se atingir alguma salvação através da arte. Nos guetos, a velha vanguarda luta desde 1916, desde o Cabaret Voltaire, desde o dadá, mas parece que ninguém mais presta atenção nestes excluídos. O mercado perdeu a culpa e os rambos da vida brilham a solta, só nos restando piruetas mentais para descobrir grandeza em John Woo ou Paul Verhoven. Sempre houve uma bronca americana contra a profundidade da cultura do velho mundo. Isto foi tema de vários musicais e chegou, paradoxalmente, a criar obras-primas como Cantando na Chuva ou Band Wagon (Na Roda da Fortuna). Os americanos não sabiam que sua genialidade vivia exatamente no superficial. Busby Berkeley é tão importante quando os Ballets Russes mas, até hoje, ninguém sabe disso nos USA. Quentin Tarantino que tinha despontado como um caminho paródico da violência americana com Pulp Fiction, virou uma salsicha comercial patrocinando porcarias Kitsch (com a bênção do trash ) em sociedade com o picareta Roberto Rodriguez, o mexicano que ia salvar o cinema independente com o El Mariachi. Arrghh...
A culpa das vítimas
Os mercadores americanos quando tentam uma reflexão, chamam os europeus de decadentes e intelectualizados. Querem é dar o golpe de misericórdia na Europa, combalida pelo pesadelo pós-ideológico. A Europa perdeu a criatividade, dizem. O fracasso dos europeus seria devido a seu snobismo, recusando-se a qualquer coisa que faça sucesso comercial. Dizem: Como são incapazes de se modernizar (leia-se: americanizar), os europeus se refugiam no passado. O último grande pintor francês foi Jean Duouffet, afirma a besta quadrada do Fernando Botero, o mais domesticado dos pintores latinos e, claro, sucesso entre os burgueses de N. York. O pior é que é verdade. A pintura européia, a música, o cinema, tudo está na UTI. Mas, a culpa é de quem? A Europa teria ficado burra? Os liberais acham que não. Acham que problema é que a Europa é inteligente demais. E isto atrapalharia a criação artística. Além disso, o americano acha que talvez a causa sejam os subsídios que o Governo dá, viciando os europeus na falta de competividade, o que provoca a falta de talento, dizem analistas como Alan Riding em jornais de arte ou o picareta (como é o nome dele?) que publicou um artigo numa revista científica imitando europeus (Lacan, etc) para provar que a cultura européia é enganadora. Tudo na linha de um neo-darwinismo-para-toda-obra que rola hoje. A culpa é dos fracos. Onde estão os pintores?, perguntam. E música clássica ? Ahh... temos o Pierre Boulez - dizem os franceses. Mas, até musicólogos europeus acham o Boulez culpado pela crise da música, impondo seu atonalismo desesperante como cânone. O pior é que é verdade; Boulez é chatíssimo.
No cinema, a tragédia é total. Depois da morte de Truffaut e Malle, além de um deprimido Godard, que é suíço só restam medíocres cineastas arrivistas, filhos da publicidade, gente menor como Luc Besson ou Leos Carax. O pior é que cest vrai. Ou seja: tudo é verdade. Só que a causa mortis talvez não esteja na Europa. Acusam o pensamento europeu de suicídio pelo elitismo intelectual. No fundo, acham que a causa da crise é que os europeus se recusam a ser americanos. Os artistas europeus teriam de aprender a contar estórias, em vez de fazer filosofia.
Não ocorre a estes filósofos de mercado que a culpa da crise cultural seja da própria América. O mundo sofre com a mutação violenta do capitalismo em cassino financeiro e ainda o acusam de sentir o golpe. A culpa é das vítimas, sempre. Se pensam assim da Europa, imaginem o que pensam de nós.