São Paulo - No começo do ano passado, Arnaldo Antunes se preparava para fazer shows e tinha um livro pronto. Vinha de lançar "O Real Resiste", álbum cuja faixa-título foi composta após Jair Bolsonaro sair das urnas como presidente e na qual afastava, como num esconjuro, a "tirania eleita pela multidão".

Em canções como "João", falava da fundação da nação não em monumentos, mas pela arte de João Gilberto; com "De Outra Galáxia', revisitava o tema do isolamento amoroso e, em "Língua Índia", nossas origens autóctones.

Seus planos, no entanto, não contavam com a intrusão do real em dimensões globais.

O coronavírus não só tolheu a turnê "O Real ao Vivo", com a troca de energias que ele considera vital, como deixou na gaveta o volume de poemas, pronto desde o fim de 2019.

Reformulado na latência da quarentena, "Algo Antigo" sai pela Companhia das Letras nesta semana. Antunes tem passado a maior parte do tempo num sítio no interior de São Paulo, de onde deu esta entrevista por vídeo.

No começo da pandemia, ficou "muito imobilizado com a situação toda", e o tema do isolamento foi se insinuando. Vários poemas escritos no intervalo de seis anos desde "Agora Aqui Ninguém Precisa de Si", como fica evidente sobretudo no início do volume, "comentavam o tempo".

Outros "iam reincidir nessa temática", para a qual pode ter pesado, ainda que não conscientemente, a aproximação dos 60 anos, que completou em 2 de setembro último.

Mas, adverte, "mesmo que haja um componente inconsciente, é uma coisa muito filtrada pela linguagem", com muita reescrita e revisão.

Segundo Antunes, se algo é recorrente em seu livro é o registro apocalíptico, por estarmos "assistindo a um certo suicídio coletivo da humanidade com a crise climática".

Ele cita "O céu desaba/o sol repete/a sua saga", de "Saga", poema gráfico em que evoca "A Queda do Céu", de Davi Kopenawa, e os versos finais de "Al(anti)go", que abre o livro.

Neste, encadeia objetos em desuso e palavras de outros tempos em rimas que convidam à leitura em voz alta, ou a imaginá-las no timbre grave e metálico do cantor.

O poema fala da persistência do passado, ainda que ameaçada, e se encerra com os versos "alfabeto de Gutenberg/derretido/iceberg", em que junta a tecnologia - outro tópico muito presente - e o aquecimento global.

Sua "angústia de vida" está impregnada pela tragédia do clima, diz. "Claro que tem outras, no Brasil a gente está vivendo um momento de muita destruição de tudo."

Mas um livro de poemas, afirma, "nunca é uma crônica de seu tempo". "É sempre uma espécie de vazamento dessa vivência a partir de uma linguagem que tem sua especificidade de elaboração."

Ou especificidades, dadas as variadas formas que, a exemplo de outros livros de Antunes, povoam esse volume.

Em "Algo Antigo", cabem a observação da natureza - beija-flor, besouro, mosca, água, vaga-lume - e poemas eróticos e amorosos ("X", "Dentro Dela"). Às vezes, misturados, como em "Pistilo" e "Flor".

Parte são poemas visuais, vertente que Antunes nunca deixou de explorar - como é o caso de "No". Escrito "ao modo de" e dedicado a Augusto de Campos, que completa 90 anos no próximo dia 14,

joga com as palavras "novidade", "vida", "devida", "idade".

Arnaldo Antunes: ""A gente vê as pessoas mais horrorosas sendo aplaudidas, pessoas passando a ter orgulho do que antes era motivo de vergonha. De certa forma, só estar fazendo poesia já é um ato de subversão"
Arnaldo Antunes: ""A gente vê as pessoas mais horrorosas sendo aplaudidas, pessoas passando a ter orgulho do que antes era motivo de vergonha. De certa forma, só estar fazendo poesia já é um ato de subversão" | Foto: Marlene Bergamo/ Folhapress

É fato que vem a pergunta, "para que poesia em termos de guerra?", mas a resposta, afirma Antunes, está "na necessidade de se contrapor a essa linguagem de ódio, da mentira, da intolerância".

"A gente vê as pessoas mais horrorosas sendo aplaudidas, pessoas passando a ter orgulho do que antes era motivo de vergonha. De certa forma, só estar fazendo poesia já é um ato de subversão, estar trabalhando pela cultura, pelas artes, já é subversão."

Se "Algo Antigo" não é eminentemente político, não quer dizer que Antunes não carregue "indignação constante" diante dos absurdos diários. Uma hora são as bolsas de pesquisa, na outra, a mineração em terras indígenas, "parece que você mal reagiu a uma coisa e já vem outra, não dá para ficar enumerando".

Essa lista infindável, somada à "questão da administração da pandemia, totalmente adversária dos recursos que a gente teria para ao menos limitar o alcance dessa doença" faz com que mesmo o contido Antunes solte um desabafo. "Eu acho que a gente tem de alguma forma manter vivos alguns princípios de civilidade. Acho que a gente estar produzindo arte, como falei no começo, já é alguma forma de reação. A gente está trabalhando com emoções que essa galera não tem."

Não é mera retórica, nem ingenuidade. Ele não acha que "a arte vai mudar a situação, politicamente falando". "Eu acho que a arte é fundamental para a gente não estagnar a nossa sensibilidade."

E, acrescenta, "é diferente do jornalismo, a arte não tem essa necessidade de comentar a vida, ela de certa forma é uma experiência de vida."

Serviço:

ALGO ANTIGO

Preço: R$ 49,90 (224 págs.)

Autor: Arnaldo Antunes

Editora: Companhia das Letras