A família é o inferno de todos nós, sentenciou o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, no auge de sua produção literária. E esse inferno dos dramas familiares é o ponto de partida do programa apresentado por Márcia Goldschmith. Os personagens do programa vão chegando, se acomodando na sala de estar do estúdio. Instalados, eles soltam o verbo, relatando as histórias arrepiantes, num desesperado impudor.
Esses convidados anônimos possuem características em comum. São pessoas simples, de baixa escolaridade, geralmente não têm acesso a advogados que os orientem sobre suas pendengas e desconhecem as conquistas da psicologia e psicanálise para aliviar suas obsessões.
Esse esquema de programa utiliza o mesmo recurso das famosas pegadinhas da televisão com enquetes do tipo ‘‘Mozart vem tocar no Rio, o que você acha?’’. É a celebração do preconceito social. Tanto as pegadinhas como Márcia se apoderam da ingenuidade do entrevistado, da insegurança emocional e exploram a boa fé, afirmando nas entrelinhas ‘‘você existe politicamente, economicamente, socialmente e culturalmente, mas é um idiota’’.
Centrados no bate-boca viciado, os participantes do programa ‘‘Márcia’’ não vislumbram nenhum horizonte, mostram apenas um comportamento compulsivo e instintivo. Acabam se afeiçoando ao martírio diário. Eles estão diminuídos em sua dignidade intelectual e acabam idiotizados por um esquema televisivo que não pede originalidade. Essas pessoas vão ao programa tentar invalidar a impotência do sentimento que impede uma convivência harmoniosa. Eles buscam um ouvinte.
O bom para o programa é quando os sentimentos fervem. Márcia tenta contornar as situações mais conflitantes e, geralmente, consegue. No final do programa, um terapeuta faz uma rápida avaliação e aconselhamento aos participantes. Tudo é muito superficial e provavelmente não resultará em mudanças no comportamento. A apresentadora Márcia Goldschmith fomenta o martírio e não oferece uma solução. Ela morde e não assopra.
Uma questão ética pode ser levantada: é correto ou incorreto se apoderar da fragilidade alheia, promover o culto à morbidez e, por vezes, esquartejar a dignidade dos convidados, como se faz nesse tipo de ‘‘entretenimento’’? O fato é que os números do Ibope sobem à medida que esses anônimos são mais frágeis e perdidos, e principalmente, quando a humilhação é mais escancarada. No dia seguinte, os comentários rendem. Esse foi o caso da mãe que não gostava dos filhos e via satélite se recusou afagar a filha. O comportamento antinatural causou mal-estar generalizado nos telespectadores.
Há coisas que não se confessam nem ao amigo, nem ao psicanalista, nem ao médico. Mas na televisão, com a oportunidade de catarse, eles exibem os sentimentos naturalmente. É claro, a produção do programa procura escolher pessoas que se superam nos 15 minutos de fama, mostrando confissões suadas de realidade.
No programa do dia 11 de novembro o tema abordado foi ‘‘Não aguento mais tanto ciúme’’. Mulheres atormentadas lavaram muita roupa suja na sala de Márcia. O casal gaúcho Gilson e Mari esquentou os ânimos no decorrer do programa. Ela, ciumenta assumida, chegou a jogar o carro num precipício numa crise de ciúme e demitiu uma funcionária, condenada pelo simples uso de um decote ‘‘V’’. No final, Gilson pediu a namorada em casamento.
‘‘Meu namorado supera o limite da ignorância humana’’ disparou Sueli, namorada do ciumento e mal-humorado Wendel, que chegou a grampear o telefone da moça. Mas o programa sobre ciúmes foi considerado um dos mais moderados já apresentado por Márcia. O terapeuta encarregado de aconselhar os casais foi o cearense Antônio Mourão Cavalcanti, estudioso do ciúme patológico. Com linguajar pouco apropriado para um terapeuta, ele chegou a dizer a um dos maridos, Otávio, que ele era ‘‘meio mole’’.
Os números do Ibope engordam à medida que encontram telespectadores que se reconhecem e até se identificam com as trevas interiores dos convidados. Muitos telespectadores, certamente, não assumirão que renderiam boas histórias para o programa. Para esses, ‘‘o inferno são os outros’’, como dizia Sartre.