No dia 1º de agosto último, portanto dez dias antes do inicio do Festival de Cinema de Gramado, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, proibir o uso da tese de legítima defesa da honra para justificar a absolvição de condenados por feminicídio.

Com esta decisão do Supremo, advogados de réus não poderão mais usar o argumento para pedir absolvição pelo Tribunal do Júri. Além disso, os resultados de julgamentos que se basearam na tese poderão ser anulados. A Corte julgou uma ação protocolada pelo PDT em 2021 para impedir a absolvição de homens acusados de homicídio contra mulheres, com base no argumento de que o crime teria sido cometido por razões emocionais, como uma traição conjugal.

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Um dos filmes concorrentes na mostra nacional era “Angela”, de Hugo Prata, uma cinebiografia que narra os últimos capítulos atribulados da vida e da morte trágica da mineira Ângela Diniz, aos 32 anos, que ficou ainda mais conhecida após seu brutal assassinato que chocou o país. Na trama, Angela Maria Fernandes Diniz (Isis Valverde), mineira de tradicional família recém-saída de uma separação (desquite, então não havia divórcio no Brasil) que resultou em perda da guarda de três filhos, conhece o advogado boa-vida Raul Fernando do Amaral “Doca” Street (interpretado por Gabriel Braga Nunes). Com ele, Angela acredita ter encontrado alguém com o mesmo espírito livre dela. Uma paixão devastadora faz o casal largar tudo e viver o sonho de reconstruir suas vidas na praia.

Mas a relação degenera rapidamente para o abuso e a violência, e em 31 de dezembro de 1976 ela chega ao fim após somente quatro meses de convivência do casal, em um dos crimes mais significativos da crônica mundana brasileira.

Assista ao trailer de "Angela":

QUEM AMA NÃO MATA

A morte violenta de mulheres vem sendo denunciada no Brasil pelos movimentos de mulheres e feministas há muitas décadas. O movimento “Quem Ama Não Mata”, criado em Belo Horizonte em agosto de 1980, ainda durante a ditadura militar, é um dos pioneiros do país. “Quem Ama Não Mata” também foi o slogan utilizado em 1981, por ocasião do segundo julgamento de ‘”Doca” Street, o assassino de Angela Diniz .

Movimentos feministas e de mulheres não aceitaram o argumento de crime passional e de legítima defesa da honra, gritando até todo o País ouvir: “quem ama, não mata”. O resultado da mobilização e do clamor popular foi a condenação do réu a 15 anos de prisão, após o reconhecimento do homicídio doloso qualificado.

O caso de “Doca” Street, o assassino, talvez seja o mais famoso protótipo dessa figura abjeta do executor “fundamentado” na honra ultrajada. Amparado por uma mídia conivente e instigante – quem não se lembra de “O Cruzeiro”, “Manchete” e “Fatos & Fotos”, as “redes sociais” impressas das décadas de 1960, 70 e 80? – , por um advogado malicioso e manipulador e por uma sociedade reacionariamente sistêmica, em muito pouco tempo o réu foi alçado à condição de mártir vitimizado pela bela socialite - a "Pantera de Minas".

Ele foi finalmente condenado num segundo júri, mas com uma irrisória pena de 15 anos. Mas , o linchamento moral de Ângela Diniz foi tão forte que provocou a reação de Carlos Drummond de Andrade em uma crônica: “Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras”, disse ele.

Ísis Valverde interpreta Angela Diniz no filme de Hugo Prata: cenas eróticas em profusão apagam a personagem que , como pessoa, apresentava uma complexidade muito além de rótulo  de 'sensual'
Ísis Valverde interpreta Angela Diniz no filme de Hugo Prata: cenas eróticas em profusão apagam a personagem que , como pessoa, apresentava uma complexidade muito além de rótulo de 'sensual' | Foto: Divulgação

RELAÇÃO ABUSIVA

É provável que quem ja assistiu o filme “Ângela” ( que em Londrina ficou em cartaz apenas uma semana), a partir da expectativa gerada pelo bem sucedido podcast “Praia dos Ossos”, de 2020 (vai virar minissérie na Prime), da produtora Rádio Novelo, se frustrou.

Isso porque, ao longo de oito episódios, a produção esquadrinha a história de Ângela Diniz com uma qualidade extraordinária e uma série de depoimentos de pessoas que viveram a época, além de trechos de reportagens de boa qualidade. Isso porque enquanto o podcast aborda, para além do crime, a ascensão social de Ângela e, por tabela, as consequências sociais do feminicídio, o filme dirigido por Hugo Prata, com

roteiro de Duda de Almeida, centra o foco no relacionamento abusivo que a socialite manteve com Doca Street, o homem que a matou. Por isso a decepção diante de outra abordagem. O filme se detém somente no aspecto abusivo da relação, o que não deixa de ser um desperdício.

Angela Diniz era uma mulher bonita, independente e à frente de seu tempo. Era uma figura ambígua, é verdade. Mas é exatamente isso que torna a história dela interessante.

Foi criada na alta sociedade mineira, estudou nas melhores escolas de BH, se casou aos 17 anos e, assim, teve filhos muito cedo. Ainda jovem, no entanto, se separou, o que ainda causava estranheza na época, particularmente, em Minas. Em função de um acordo com o ex-marido, teve que deixar os filhos.

No Rio, para onde se mudou, ficou conhecida como “a Pantera de Minas”. Se dizia contrária ao feminismo, mas, apesar de tudo, parecia corajosa. Mas pouco ou quase nada disso aparece no filme. Sua liberdade sexual, num contexto em que mesmo mulheres de condição financeira alta costumavam conformar-se em casamentos de conveniência, seria mesmo natural que o filme enfatizasse o sexo, como enfatiza – mas um pouco demais.

Há cenas eróticas em profusão ao longo da história, algumas carregadas de violência para mostrar a deterioração do relacionamento com Doca, que vai se tornando mais possessivo e ciumento. Mas provavelmente essas sequências ocupem mais espaço do filme do que seria razoável quando se declara a intenção de fazer justiça a mais aspectos de sua protagonista, sabidamente bela e sensual mas, como pessoa, certamente muito mais do que esse rótulo.

Ângela Diniz, que foi assassinada por Doca Street (Raul Fernando do Amaral Street) na década de 70. Doca foi julgado e condenado a dois anos, com direito a sursis. Saiu livre do tribunal e virou uma espécie de herói nacional. (13.08.1973. Foto: Acervo UH/Folhapress)
Ângela Diniz, que foi assassinada por Doca Street (Raul Fernando do Amaral Street) na década de 70. Doca foi julgado e condenado a dois anos, com direito a sursis. Saiu livre do tribunal e virou uma espécie de herói nacional. (13.08.1973. Foto: Acervo UH/Folhapress) | Foto: Foto: Acervo UH/Folhapress

IBRAHIM SUED

Um aspecto realista da trama está na inserção do colunista social Ibrahim Sued (Gustavo Machado) como namorado e amigo de Ângela antes de Doca - na época do crime, essa intimidade foi um tanto obscurecida, já que o jornalista, que era famosíssimo, foi poupado de ser mencionado pela mídia. Abraçada com muita entrega pela atriz Ísis Valverde, Ângela surge no filme como uma explosão de beleza e sensualidade, mas roteiro e direção não entregam mais aspectos da complexidade dessa mulher, que foi sacrificada na fogueira midiática e judicial e, de certa forma, continua a sê-lo até hoje. Portanto, o filme é uma oportunidade perdida de ir mais longe na tarefa de resgatar sua plena humanidade.

O “Doca” Street de Gabriel Braga Nunes, por sua vez, comparece com uma interpretação quase caricatural, num esforço em vão de humanizar um personagem condenado desde o início (no filme) a ocupar um espaço negativo.

O filme é tão protocolar e o diretor Prata parece tão desinteressado em tudo aquilo que até o olhar do longa para Angela é conflitante e quase inexistente. Uma pena.