"Amor Sublime Amor": mestre Spielberg revisita Shakespeare
Mais cinematográfica do que teatral, essa nova versão de um filme dos anos 1960 arrebata de novo o espectador
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 16 de dezembro de 2021
Mais cinematográfica do que teatral, essa nova versão de um filme dos anos 1960 arrebata de novo o espectador
Carlos Eduardo Lourenço Jorge
A expertise, o virtuosismo, o brilho de Steven Spielberg (75 anos neste sábado) estão uma vez mais revalidados neste versão de “Amor Sublime Amor”, demonstrando que a genialidade do realizador está à altura dos grandes gênios cinematográficos em todos os tempos.
O musical de Leonard Bernstein, Stephen Sondheim e Arthur Laurents, respectivamente música, letras e libreto originais da Broadway, teve sua primeira e excelente versão para o cinema em 1961, quando levou 10 Oscars, inclusive de melhor filme – embora esta versão de Robert Wise e Jerome Robbins evidenciasse suas raízes teatrais. Spielberg tornou o material menos teatro, menos artifício, e deu novas asas para o voo daquele clássico, com várias sequências muito parecidas mas diferentes (quem esteve no velho Cine Londrina nos primeiros anos 1960, nas reprises em outras salas e agora nos multiplex da cidade sabe do que estou falando), sequências que se tornam agora igual e instantaneamente memória clássica.
Esta adaptação/versão muito livre de “Romeu e Julieta” está ambientada na Nova York da década de 1950, no lado oeste da cidade (o West Side do título original). No sensacional sobrevoo de abertura, se vê que há demolições para a construção do Lincoln Center. E é nesta zona, quase de terra arrasada, onde transcorre a história.
Spielberg de cara se nega a refilmar a teatralidade de 60 anos atrás. Ele se atreve a reconstruir a cidade, como se estivesse filmando em 61 – o resultado é deslumbramento e assombro, não há uma única cena que não seja puro cinema.
Spielberg usa todas as canções maravilhosas, e as explora perfeitamente: realiza mudanças que não alteram o coração da história e entrega um filme...novo. Mesmo que você conheça muito bem o filme anterior, e se lembre bem de muitos detalhes (como eu, deslumbrado permanente e confesso), verá que o que está agora na tela é definitivo. É bem verdade que um remake (definição aqui não pejorativa) em mãos de gênio é como pegar um primeiro rascunho e corrigi-lo, mas o diretor entende que havia conflitos que foram adiados e agradece a versão anterior por ter avançado em algumas coisas, como o personagem (trans) Anybody, que aqui recebe o espaço de gênero que tentaram colocar, com muita ousadia, nos anos sessenta. Se o primeiro filme respeitou os paradigmas da época, o novo também o faz, com mais acertos que o original, alcançando um resultado impecável.
As coreografias da primeira versão eram perfeitas. Mas Spielberg decide ser muito mais cinematográfico, e que tudo flua da forma mais realista, quase hiper, mesmo sendo um musical. Prefere deixar a coreografia para depois. Mas a questão é que tudo no diretor é coreografado. Sua câmera sempre se move com um ritmo e a montagem, sempre com seu fiel colaborador Michael Kahn, tem a perfeição pontual de todo o seu cinema. Ver seu trabalho é assistir à realização de filmes. Como ele consegue que cada posição da câmera seja perfeita e funcional, como ele narra com clareza e ritmo únicos, como se fosse o único capaz de entender o que é o cinema.
Parece exagerado, até que se veja o resto hollywoodiano feito atualmente.
Outro de seus fieis escudeiros, o diretor de fotografia Janusz Kaminski, faz mágica. O exterior parece um filme dos anos 1950. Sim, com efeitos especiais, figurinos e direção de arte, mas parecem daqueles anos por causa da luz, um trabalho ainda mais surpreendente.
De repente, como costuma acontecer em Spielberg, toda a tela ganha vida, tudo é possível, as imagens tomam conta do mundo e é possivel atingir um nível de espectadores que ninguém mais atinge hoje. Como durante a música “America”, uma das mais sofisticadas e divertidas de todas, com uma encenação que tem todo o impacto do filme original e do novo em um único número. Seu cinema é um dos poucos que consegue se mover pela construção visual, não porque a cena seja dramática, chorosa. Dá vontade de aplaudir, quando a cena acaba. Se alguma vez, nesta era do streaming, nos esquecermos do cinema, do nosso amor pela grande tela, ver/rever “Amor Sublime Amor” será a contrapartida perfeita. Ainda fico arrepiado todas as vezes que me lembro desse número. Esse é o cinema. E isso é, acima de tudo, o cinema de Steven Spielberg. Obrigado, mestre.