Muito se fala sobre fatos históricos e o que eles representam. Mas pouco se fala sobre os sentimentos provocados pelos acontecimentos históricos. Sensações afetivas geradas a partir da vivência dos fatos.

O escritor inglês Ian McEwan oferece um panorama das sensações provocadas pelas guerras no romance “Cães Negros” que acaba de chegar às livrarias. Mais especificamente os sentimentos individuais gerados pela Primeira Guerra Mundial, o grande fantasma da Europa.

Um dos principais escritores britânicos da atualidade, Ian McEwan escreveu “Cães Negros” em 1990 sob o efeito da queda do Muro de Berlin, ocorrida em 1989. O livro foi publicado originalmente no Brasil em 1996 pela editora Rocco. Após mais de 20 anos descansando em sebos, “Cães Negros” recebe nova edição pela editora Companhia de Bolso com nova tradução.

O romance é narrado por Jeremy, um órfão que procura nos pais dos amigos alguma sensação de família. Ao longo da juventude começa a suprir a ausência de pai e mãe pelo contato com pais e mães de seus amigos próximos. Enquanto todos os jovens de sua idade desejam distância dos pais, ele deseja a presença de pais alheios.

Com o passar do tempo esse desejo recai sobre os pais de sua esposa, Bernard e June. Então Jeremy resolve resgatar a conturbada história de amor de seus sogros. Uma história de amor que não conseguiu resistir às divergências ideológicas do casal.

June e Bernard se apaixonam no final da Primeira Guerra. Após se casarem, realizam uma viagem de lua-de-mel para a França. Sonhando com os ideais socialistas que contagiam a juventude, aspiram pela justiça social de um mundo em restauração. Mas uma viagem que a princípio seria um passeio de amor acaba se tornando uma vivência das cruéis consequências da guerra.

Ao ser atacada por ferozes cães abandonados pelo exército nazistas, June percebe que o mal realmente existe no mundo, e que em algumas situações ele se materializada da forma mais sombria. Essa experiência marca profundamente June, que passa a considerar que se o Mal existe, Deus também existe.

Sua sensação está expressa nas seguintes palavras: “Naquela manhã eu fiquei cara a cara com o mal. Não entendi muito na hora, mas senti em meu medo – aquelas animais eram criações de imaginações depravadas, de espíritos perversos que nenhuma teoria social poderia explicar. Estou falando do mal que vive dentro de todos nós. Ele se apodera de um indivíduo, de vidas privadas, de uma família, e então quem mais sofre são as crianças. E nas condições certas, em países diferentes, em tempos diferentes, vem à tona alguma crueldade terrível, alguma violência sem limites contra a vida, e todos ficam surpresos pela profundidade do ódio que carregam dentro de si mesmos. Depois ele regride e espera. É algo dentro de nossos corações.”

Em “Cães Negros”, Ian McEwan expõe os impasses e contradições entre ideologia e espiritualidade. O amor entre June e Bernard, apesar de nunca ser extinto, se torna impossível. Os dois se amam, mas suas ideias se tornam incompatíveis diante dos fantasmas da guerra.

As atrocidades das guerras não terminam quando as guerras acabam. Elas permanecem latentes, embaixo do tapete, prontas para ganhar a luz do dia e germinar novas crueldades: “Bernard teve a impressão da guerra recém-concluída não como um fato histórico e geopolítico, mas como uma multiplicidade, uma quase infinidades de lutos particulares, como um pesar sem limites subdividido em pedaços minúsculos sem perder nem um pouco a força entre indivíduos que encobriam o continente como poeira, como esporos cujas identidades separadas permaneciam desconhecidas, e cuja totalidade exibia mais tristeza do que qualquer pessoa jamais conseguiu sequer começar a compreender. Um peso carregado em silêncio por centenas de milhares, milhões, como a mulher de luto por um marido e dois irmãos, cada luto uma história de amor específica, intrincada, fúnebre, mas que poderia ter sido outra coisa. Era como se ele nunca tivesse pensado sobre a guerra, sobre seu custo. Pela primeira vez, sentiu a escala da catástrofe em termos de sentimentos. Todas aquelas mortes únicas e solitárias, com o consequente sofrimento também único e solitário, que não aparecia em conferências, em manchetes, na história, e que tinha se recolhido em silêncio para dentro das casas, cozinhas, camas não compartilhadas e lembranças aflitas.”

Serviço:

“Cães Negros”

Autor – Ian McEwan

Editora – Companhia de Bolso

Tradução – Daniel Pellizzari

Páginas – 168

Quanto – R$ 39,90 (papel) e R$ 27,90 (e-book)

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