“Ainda Estou Aqui”, um filme que há semanas que continua a informar e emocionar plateias das capitais e principais cidades brasileiras, não é apenas o retrato de uma família. É também o retrato de uma nação inteira. É um filme que denuncia as práticas ditatoriais em curso durante a década de 1970 no Brasil. Um verdadeiro testemunho do que aconteceu e do que só foi oficialmente admitido depois de várias décadas. É um retrato que vai além dos Paiva, ainda que eles sejam a síntese perfeita dela. O roteiro, há três meses premiado em sua categoria no Festival de Veneza, também abraça outras realidades sem perder de vista a história de Rubens e, sobretudo, a transformação da vida de Eunice e dos filhos deixados sozinhos.

LEIA TAMBÉM:

Selton Mello comemora os 2 milhões de espectadores de "Ainda Estou Aqui'

As batalhas da memória em torno daquele regime militar, desde a década de 1960, tem tido um protagonismo rico em relação às revisões historiográficas daquele período nefasto. Revisões que parecem estar muito longe de um ponto de acomodação na sociedade brasileira. E o cinema é e será sempre um meio para a construção da memória coletiva do país, capaz de impactar o público tanto na esfera da razão como nas emoções.

'Ainda Estou Aqui" não é só um retrato da família Paiva, é o retrato de uma nação inteira
'Ainda Estou Aqui" não é só um retrato da família Paiva, é o retrato de uma nação inteira | Foto: Divulgação

Através das imagens, é possível ter um registro histórico do que pessoas realmente viveram, servindo como ferramenta de resistência. É diferente ler o depoimento de uma vítima do regime e ouvi-la e vê-la falar. Temos que relembrar o golpe e as tentativas de hoje e sempre, porque o Brasil tem uma tradição de autoritarismo e nossa democracia é muito jovem. O que aconteceu em janeiro de 2023 lembra que ela está sempre em risco e é preciso nos mantermos vigilantes para que seja preservada.

Paradoxalmente, foi durante os primeiros anos da ditadura que o cinema brasileiro demonstrou seus grandes momentos de criatividade, quando explodiu a fase do Cinema Novo, quando Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, entre outros criadores/autores, ousaram novas tendências estéticas através de uma linguagem inovadora. Foi sem dúvida um cinema ideologizado, o que acirrou às últimas consequências o fervor embrutecido e desinformado da censura reacionária, órgão essencial ao controle dos militares.

TESOURAS DA CENSURA

Algumas das inúmeras obras vitimadas pelo poder inquisitorial das tesouras das juntas militares/ditatoriais foram “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), dirigido por Glauber Rocha, sobre o vaqueiro Manuel, que se rebela contra a exploração e opressão de um latifundiário local. Mix de surrealismo e crítica social, o filme foi proibido devido a seu teor considerado “subversivo”; “O Bandido da Luz Vermelha” (1968), dirigido por Rogério Sganzerla, narra a história de um criminoso que aterrorizou São Paulo nos anos 1960.

Trailer de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha:

Com sua abordagem estilizada e crua, foi banido por retratar a violência de maneira gráfica e por desafiar as convenções estéticas e morais da época; “Amor, Palavra Prostituta” (1981), de Carlos Reichenbach, sobre sexo e política entre casais paulistanos. A única cópia não mutilada pela censura está ainda hoje na França.

Mas o furor censório não se limitou aos títulos brasileiros. Muitos clássicos estrangeiros não foram poupados naquele período. Entre eles, “Eu Vos Saúdo, Maria” (1985), do aclamado Jean-Luc Godard, gerou polêmica e censura devido à sua interpretação contemporânea da história bíblica de Maria, mãe de Jesus. A representação de temas religiosos de forma não convencional gerou controvérsia e resultou na proibição do filme no Brasil; “Laranja Mecânica” (1971), obra dirigida por Stanley Kubrick, foi banida por aqui devido à sua “representação gráfica de violência e temas perturbadores”. A abordagem estilizada e provocadora da natureza da violência e da liberdade individual chocou as autoridades brasileiras na época e resultou na sua proibição por muitos anos; “O Último Tango em Paris” (1972), dirigido por Bernardo Bertolucci e interpretado por Marlon Brando e Maria Schneider, o filme foi proibido devido às “suas cenas de sexo explícito e abordagem provocativa sobre os relacionamentos humanos”.

Entre as pouco numerosas produções que partiram para a denúncia corajosa dos subterrâneos da ditadura militar no Brasil, devem ser citados “Pra Frente Brasil” (1982), dirigido por Roberto Farias e grande vencedor do Kikito de melhor filme no Festival de Gramado daquele ano; “Cabra Marcado para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho; “Que Bom te Ver Viva” (1989), de Lucia Murat; Nunca Fomos Tão Felizes”(1984), de Murilo Salles; “O Torturador”(1980), de Antônio Calmon e “O Mensageiro”(2023), de Lucia Murat.

Confira trecho de "Pra Frente Brasil", de Roberto Farias:

CAMPANHA DE ÓDIO

E o que mais dizer sobre esta maravilhosa obra que persiste corajosa e lúcida nas telas brasileiras, “Ainda Estou Aqui”, a despeito da sórdida campanha que sofreu recentemente nas redes sociais como espécie sórdida de agência medieval de gabinete do ódio com sobrevida neste século 21? Salles cria um filme contido, sem gritos desesperados mesmo durante as sequências da prisão de Eunice que é investigada pelo regime devido à atuação política do marido. É só de um cinema simples que Salles precisa, um cinema que usa a casa como cenário protetor, refúgio benéfico das tempestades. É por isso que a despedida da casa carioca se torna, apesar de tudo, um dos momentos mais dolorosos do filme imortalizado pelas imagens trêmulas daquele pequeno mas imenso filme amador rodado pela jovem Vera.

Mas o filme continua a ser uma longa história entrelaçada com imagens fotográficas ou com aquele cinema familiar que revitaliza corpos, que reconstrói momentos de ausência da câmara. As fotografias, com as quais se cobrem as paredes, com que se enchem as caixas, são as imagens faltantes que tornam presente o passado, os filmes desmontados, riscados, incertos no seu progresso, que recompõem o quadro das memórias num movimento que naquela hora já não poderia existir na família Paiva.

Confira trailer de "Ainda Estou Aqui", de Walter Salles:

Memória e História, presente e passado duro se entrelaçam novamente num filme que mais uma vez lança luzes sinistras sobre esta América Latina que se tornou uma encruzilhada de males terríveis no mundo e um palco para o planificação e exercício de novas ditaduras. Se permitirmos que este golpismo de ópera bufa se torne realidade...

O filme de Salles conta tudo por si só e não precisa de mediação, o sopro da história e o da família Paiva movem-se em uníssono num filme em cujo fluxo de imagens encontramos as muitas verdades que o cinema pode contar com clara eficácia.