Enquanto você espera (e deve mesmo esperar com ansiedade) a originalidade irlandesa de “Os Banshees de Inisherin”, vá se deliciar assistindo um dos mais belos títulos da presente temporada: “Aftersun"(em cartaz no Cineflix do Aurora Shopping, em Londrina, em sessões às 19h20), um filme sobre memória e arrependimento, sobre encontrar pequenos oásis de felicidade, uma obra que trabalha da maneira mais bela para dizer o que não foi dito. É um compêndio de rara maturidade sobre relacionamento entre pais e filhos.

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Temos sempre a predisposição de lembrar o passado mais bonito do que realmente foi. Aquela viagem em família ao litoral, da qual só nos restam fotos desbotadas e fitas VHS, teria tido mil problemas antes, durante e depois, mas só nos lembramos do sol, da praia, daquela sensação da imortalidade. “Aftersun” se torna uma maravilha absoluta porque, aproveitando os momentos mais felizes, é capaz de reanalisar a nostalgia em tom dramático, nos oferecendo, aliás, uma das melhores cenas finais dos últimos anos.

Estreando na direção aos 35 anos, a escocesa Charlotte Wells parece evocar parte de suas memórias neste muito sutil trabalho sobre lembrança, ausência, descoberta e reconhecimento. Breves cenas da protagonista por volta dos 30 anos são intercaladas, em contraponto não isento de tristeza, na história que se passa duas décadas atrás, quando a adolescente Sophie dividia as férias de verão com o pai. Filha de um casal divorciado, ela observa o mundo com acuidade e curiosidade, mais ou menos a mesma coisa que a realizadora do filme faz com sua câmera: curiosa sobre o que pensa a menina, sobre como vive a separação dos seus pais, o que ela espera nestes lânguidos e doces dias de verão, aprendendo a se conhecer enquanto conhece seu pai, talvez pela primeira vez em sua vida. É como se a diretora estivesse tentando criar seu próprio ritmo, sua própria linguagem visual registrando os raros momentos de qualidade que a garota escocesa passa com o pai, com quem não convive desde o divórcio, em um resort na Turquia.

O lugar, “all inclusive”, aparentemente atende turistas da Inglaterra. Estamos em meados da década de 1990, época da Macarena. Não há celulares – o pai, Colum (Paul Mescal, “A Filha Perdida”) fala com a ex-esposa via telefone público – e Sophie (Frankie Corio), de 11 anos, está fascinada com a nova câmera de Colum, comprada para registro de férias. Note-se que não há instagram, nem redes sociais. Sophie e seu pai têm um vínculo claro. Ele a chama de “boneca”; ela sente que pode falar com ele sobre qualquer coisa. Ele trouxe muitos livros de autoajuda – sobre meditação e tai chi – mas parece que nunca os lê.

Nos dias que passam juntos não acontece muita coisa (não há “enredo”), mas tudo está acontecendo se você prestar atenção. A câmera às vezes flutua e gira enquanto Sophie opera a filmadora, como se estivesse em uma jornada de autodescoberta. Nesse sentido, “Aftersun” é o filme de Sophie, como se fosse contado a partir de sua memória.

Ela também dá sinais de se tornar uma mulher jovem, como quando anda com um grupo de adolescentes. À medida que Sophie "amadurece" durante a viagem, ela gradualmente percebe que pode haver algo mais complexo para seu pai do que ela pode entender atualmente – os livros são uma dica – mas este filme silenciosamente comovente é irrepreensível em sua contenção.

A HISTÓRIA ENTRE OS FOTOGRAMAS

“Aftersun” vive naqueles momentos íntimos em que não devemos entrar, nas conversas entre pai e filha que a priori são supérfluas, mas que escondem o amor de quem se apega à filha como única razão para não desabar. À medida que a menina cresce naquele verão, seu pai fica menor. E precisamos apenas de alguns vislumbres do futuro para entender o relacionamento posterior de Sophie com o pai. Apenas alguns segundos são capazes de preencher toda uma história perdida entre os fotogramas.

Charlotte Wells narra com a segurança e a sutileza que só os grandes diretores têm, mas com a vantagem de fazê-lo pela primeira vez. O acerto de usar uma câmara de vídeo pelas mãos dos próprios atores, como símbolo da nostalgia e do indelével, é enorme: desde o início, essas gravações estão longe de ser uma simples adição visual e tornam-se uma espécie de eternos hieróglifos em que pai e filha tentarão se encontrar ao longo do tempo.

Num mundo de filmes descartáveis, onde relações óbvias e roteiros óbvios são exagerados para justificar o gosto pela simplicidade, é quase um milagre encontrar um filme tão direto e acessível como “Aftersun”, mas ao mesmo tempo tão intrincado e triste. O filme nunca permite relaxar junto às ondas ou ao bar do hotel: ele nos obriga a estar sempre alerta diante de um gesto, um olhar, uma aceno ao futuro, uma frase que revele uma alma destroçada.

Há filmes que exigem acurada reflexão, e cujas críticas podem ser injustas se escritas a sangue quente. É o caso deste, no qual sei que continuarei pensando ao correr do tempo, desvendando novas camadas, momentos e silêncios. O longa de estreia de Charlotte Wells é sobre um amadurecimento que entra bem doce, como sorvete ao sol de verão, mas deixa o gosto amargo que só as grandes tragédias da vida deixam.

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