São Paulo - O romancista Abdulrazak Gurnah, da Tanzânia, venceu o prêmio Nobel de Literatura deste ano, o maior reconhecimento mundial a um escritor vivo.

A Academia Sueca fez na manhã desta quinta-feira (7) o anúncio que pega todas as bolsas de aposta de surpresa. Nenhum dos livros do autor, escritos em inglês com traços de suaíli, árabe e hindi, foi traduzido no Brasil.

 Abdulrazak Gurnah: Nobel de literatura não tem nenhum livro publicado no Brasil
Abdulrazak Gurnah: Nobel de literatura não tem nenhum livro publicado no Brasil | Foto: AFP Photo/ University of Kent/ Simon Jarrat

Nascido na ilha de Zanzibar e radicado no Reino Unido, Gurnah se tornou rapidamente um expoente da literatura pós-colonial, com os olhos voltados à África Oriental.

O comitê do Nobel justificou a escolha "por sua rigorosa e compassiva investigação sobre os efeitos do colonialismo e os destinos dos refugiados na lacuna entre culturas e continentes".

"Os personagens itinerantes de Gurnah, na Inglaterra ou no continente africano, se encontram entre a vida deixada para trás e a vida que vem adiante", disse o porta-voz da Academia Sueca. "Enfrentando o racismo e o preconceito, mas também se impelindo a silenciar a verdade ou reinventar suas biografias para evitar conflito com a realidade."

O escritor se mudou para o Reino Unido aos 18 anos, depois que um conflito armado estourou em Zanzibar em meio à perseguição estatal à minoria árabe a que ele pertence.

"Sua saída precoce do país explica o papel central do exílio em todos os seus trabalhos, mas também sua falta de nostalgia pela África pré-colonial", acrescentou o porta-voz. "Em Gurnah, você encontrará histórias marcadas por destinos individuais que não se conformam à narrativa colonial da história."

O Nobel de Literatura vinha tendo anos turbulentos antes da vitória pouco ruidosa da poeta americana Louise Glück, no ano passado. Outra cria dos Estados Unidos, o músico Bob Dylan causou um terremoto nos círculos literários ao ser escolhido para o prêmio há cinco anos, quando o principal de sua obra são letras de canções.

No ano seguinte, o Nobel passou por sua maior crise, devido a acusações de estupro e corrupção no comitê que escolhe os vencedores, o que causou sete baixas na instituição. Em 2018, o prêmio não foi entregue —foi a primeira vez que isso aconteceu por um motivo diferente de uma guerra— e, em compensação, a instituição decidiu escolher duas pessoas em 2019.

Mas isso não acalmou ânimo nenhum, já que ao lado da polonesa Olga Tokarczuk, o Nobel escolheu o austríaco Peter Handke, sob quem recaíam acusações de racismo e de negar a existência do genocídio na Bósnia.

Fundada há 232 anos pelo rei da Suécia com o objetivo inicial de proteger seu idioma, a Academia Sueca seleciona desde 1901 o vencedor do Nobel, que hoje ganha um prêmio de 10 milhões de coroas suecas, ou cerca de R$ 6 milhões.

Dos 118 escritores escolhidos até hoje, apenas 16 foram mulheres. Só três pessoas negras venceram além de Gurnah –a americana Toni Morrison, o nigeriano Wole Soyinka e Derek Walcott, da ilha caribenha de Santa Lúcia.

O eurocentrismo e a anglofilia, que sempre marcaram o Nobel de Literatura, ainda perduram —vale lembrar que a obra de Gurnah é escrita em inglês e irradiada do Reino Unido. Nove dos dez premiados da última década vieram da América do Norte ou da Europa —a exceção foi o chinês Mo Yan, em 2012.

CONHEÇA OS LIVROS DO AUTOR

O tanzaniano Abdulrazak Gurnah, vencedor do Nobel de Literatura deste ano, é muito pouco conhecido no Brasil - afinal, nunca foi editado no país.

Radicado no Reino Unido, ele é autor de dez romances, publicados de 1987 até o ano passado, que exploram principalmente os efeitos do colonialismo e do desterramento das populações africanas. Conheça abaixo suas principais obras.

'Memory of Departure' (1987)

O romance de estreia de Gurnah já apresenta os principais temas de sua carreira --um jovem decide escapar da situação de miséria de sua família em meio à independência de seu país, que coloca no poder um novo governo que aumenta as restrições ao estudo. Ele foge para Nairóbi, no Quênia, para morar com um tio rico.

'Paradise' (1994)

É seu romance mais conhecido, indicado ao prêmio Booker e tido como determinante para a escolha do comitê do Nobel. A narrativa acompanha o menino Yusuf, filho de um hoteleiro tanzaniano, que é dado por seu pai a um comerciante, Aziz, como contrapartida de uma dívida. As viagens que o garoto faz com Aziz pelo interior do Congo levanta comparações a "Coração das Trevas", de Joseph Conrad, mas pelo ponto de vista africano.

'Desertion' (2005)

O elogiado romance intercala duas histórias de amor proibido --um explorador inglês que se apaixona pela jovem que cuida de sua recuperação enquanto ele convalesce numa viagem pela costa leste da África; e o narrador, que cai de amores pela neta dessa enfermeira 50 anos depois. As histórias servem para matizar a evolução e as consequências do colonialismo africano.

'Afterlives' (2020)

O romance mais recente do escritor ilustra os efeitos da violenta colonização alemã no início do século 20 na Tanganica, hoje Tanzânia, a partir de um mosaico de personagens. Entre eles, estão um soldado treinado pelos alemães que retorna ao vilarejo natal e um jovem que se alista numa milícia local que tem a reputação de infligir crueldades sobre os seus pares africanos. "Em um mundo que usa as destrutivas erupções de guerras como marcadores da história, Gurnah mostra o conflito global do ponto de vista daqueles que decidiram olhar um para o outro e sobreviver", descreve um crítico do britânico The Guardian.