A vida, a verdadeira, enfim.. reencontrada. Eis uma das promessas da poesia moderna, quando Rimbaud nos diz: “A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo”. E eis o que nos oferece Wim Wenders, de uma forma singela e delicada, neste seu precioso ‘Dias Perfeitos’ (atualmente em cartaz no Villa Rica).

Prestes a completar 80 anos, o cineasta alemão mescla neste filme um certo realismo onírico a um humor inesperado. Rodado em apenas 3 semanas, ‘Dias Perfeitos’ acompanha o dia-a-dia de Hirayama, um senhor de 60 e poucos anos que limpa banheiros em Tóquio. Esses banheiros, no entanto, não foram construídos de forma convencional: eles integram o programa The Tokyo Toilet, projeto que recentemente promoveu a recriação visual de 17 toilets públicos como forma de expressar a tão conhecida hospitalidade da cultura japonesa.

Ao longo de todo o filme, não sabemos quase nada de Hirayama. Homem de poucas palavras, ele acorda no mesmo horário, cuida de suas plantas, toma um café já em seu carro, no qual segue para o trabalho ouvindo clássicos do pop rock ocidental em fitas cassete. Leitor frequente de exemplares baratos, ele também produz fotos todos os dias da mesma luz que incide sobre as folhas de uma árvore diante da qual almoça.

O cotidiano de Hirayama cumpre, por um lado, um itinerário defendido pelos surrealistas. Há 100 anos, em seu manifesto, Breton já criticava o racionalismo e a moral para, em contraponto, elogiar o automatismo dos nossos hábitos, e um estado onírico imposto a si mesmo. Sob esse aspecto, Hirayama vive de olhos abertos para tudo aquilo que no mundo sensível se apresenta como algo mágico, insólito, próximo ao fantástico.

Esse universo, no entanto, não é filmado de forma metafísica, como se atrás (ou no interior) de cada objeto ou pessoa existisse um fundamento moral unificador que dá sentido a tudo. Wenders encontra a sua verdade a partir da superfície, da pele, do concreto. É a partir da figura do ator Koji Yakusho, sobretudo, que ele se permite especular e investigar outros mundos possíveis.

Essa investigação de Wenders parte do pressuposto que o Cinema não é um espelho do mundo, e sim algo que o constitui. Saber ver, nesse caso, é saber acessar não só que está presente e no campo do visível. Saber ver é também a aproximação a algo impreciso, descontínuo, para o qual não há formas e palavras, mas, que mesmo assim, reconhecemos como algo da nossa natureza mais íntima. Ou, como diria, Alberto Caeiro, saber ver é uma “aprendizagem de desaprender”.

Estamos neste filme a partir do ponto de vista do personagem Hirayama. É ele quem nos conduz a partir de gestos, olhares, pausas, hesitações. Assim como Travis, de ‘Paris, Texas’, Hirayama é uma pessoa reservada. Por outro lado, ele não chega a ser uma figura solitária, pois é habitado por tudo que lê, ouve e sente.

A partir desse personagem, Wenders consegue algo muito raro: ele filma em um país que não é sua terra natal sem imprimir um olhar exótico sobre o país estrangeiro. Umas das razões para essa aparente naturalidade de seu olhar é o trabalho ao lado do corroteirista Takuma Takasaki, que contribuiu para a escolha das locações e na forma de emoldurar esse retrato de um certo Japão contemporâneo.

O CINEASTA DO EXTRAORDINÁRIO

Há também outra conexão mais profunda: Hirayama era também o sobrenome da família de ‘Era uma vez em Tóquio’, obra-prima de Yasujiro Ozu, o mestre espiritual de Wenders. Ozu é o cineasta que vê o extraordinário no cotidiano; que encontra no mais simples, o mais fantástico. Sem se valer das técnicas de filmagem de Ozu (que filmava muito com a lente 50mm - a mais próxima do olhar humano -, e quase sempre utilizava câmera fixa), Wenders faz, contudo, o seu filme mais próximo do mestre. Isso porque Wenders centrou o seu olhar para o mundo interno de seu personagem. Como se apenas ali, em uma dimensão de sombras móveis e luz errante, existisse uma conexão com o verdadeiro.

Mas quem seria esse homem tão discreto, e tão arraigado a uma certa rotina? Do seu passado, sabemos apenas que tem uma irmã, uma sobrinha e um pai doente. Das poucas frases em que Hirayama afirma algo de forma concreta, ele diz: ‘Agora é agora. Da próxima vez é da próxima vez’, em uma economia de recursos que nos lembra a poética de um Bashô, um dos precursores do Haikai. Wenders compõe seu protagonista a partir de uma lógica de subtração: ele retira quase tudo, deixando apenas vestígios. Mas são esses pequenos elementos que tornam Hirayama uma personagem mais complexa: há nessa figura também um certo egoísmo, ao optar por não ver o pai; ou também uma certa vaidade, ao controlar a sua rotina de forma tão impecável.

Nas cenas finais, em que a rotina de Hirayama é quebrada pelo fato de um colega ter pedido demissão, vemos mais um lado lado da personagem: ele se revolta contra o fato de que teve de abandonar a sua rotina por um só dia. Seria medo ou ansiedade, para ficar nessa dualidade que Patricia Highsmith (uma das autoras favoritas de Wenders) teria construído em um dos romances que Hirayama lê?

Wenders não responde. E felizmente não precisaria responder. Pois esse não é um filme de causa e consequência, no qual o protagonista inicia sua trajetória com um conflito central e ao longo do filme passa por mudanças significativas até o momento do desenlace dramático. Esse é um filme sem conflitos. O ruído, quando presente, aparece de forma subterrânea, quase ausente.

Imagem ilustrativa da imagem A vida e seu encanto na Tóquio de Wim Wenders
| Foto: Divulgação

A DANÇA DAS SOMBRAS

Wenders olha para o mundo como se ele fosse sempre o mesmo, e sempre outro. O diretor resume essa postura estética ao incluir, pós créditos, o significado da palavra Komorebi, que em japonês, descreve o dançar das sombras criado pela luz do sol por meio das folhas das árvores. Em meio a essa instabilidade, uma única vez, surge uma luz, que nunca mais irá se repetir. Toda a trajetória de Hirayama parece estar voltada nessa direção: ele quer se sentir vivo, diante de um momento único. Essa busca, porém, não traz só alegrias ao personagem. Há uma angústia contínua. Um dia perfeito, nesse sentido, não seria apenas o dia do encontro com o inesperado: é, na verdade, o dia em que essa busca se dá de forma plena, constante e em tom crescente. Sem respostas.

Por último, há a conversa de Hirayama com um senhor que está prestes a morrer. Diálogo improvável, literalmente localizado debaixo da ponte, ele ocorre como um encontro de dois seres marginalizados: um à beira da morte; e outro tão sensível à vida. Hirayama, levemente alcoolizado, propõe um jogo no qual a sombra de cada um irá se sobrepor à do outro. Justamente a figura da sombra, que pode se referir tanto ao nosso lado mais oculto, sombrio, mas também ao nosso universo espiritual, intangível. Esses dois seres, que até então eram desconhecidos, estão agora unidos, de uma forma mágica: seus mundos, enfim, se conectaram. A conexão entre as duas sombras, por outro lado, parece torná-las mais escuras. Algo que se ganha, algo que se perde.

Sem ser moralista ou didático, hermético ou contemplativo demais, Wenders consegue neste filme questionar o espectador de uma forma muito direta: o que fazemos com a nossa subjetividade - toda aquela sensação que temos diante do mundo e para a qual não conseguimos dar um nome? É como se o mundo contemporâneo estivesse a todo momento nos convidando a nos tornarmos outros: uma despersonalização contínua e inconsciente. Hirayama, no entanto, permanece em rumo contrário. Não é à toa que ele está a ler o livro 'Palmeiras Selvagens', de Faulkner, logo no início.

A resposta que Wenders nos oferece está talvez em um dos segmentos mais plásticos do filme: as cenas oníricas em preto-e-branco criadas por Donata Wenders, esposa do diretor. Há nesses fragmentos, envoltos de quase silêncio, uma verdade e uma emoção que raramente o Cinema nos apresenta. Pois ali tudo é forma e ritmo, contraste e dissolução, presença e ausência. Toda essa percepção de mundo que o filme nos traz está sintetizada também, de forma magnífica, na cena final de Hirayama, em que a personagem nos encara (pela primeira vez) entre o sorriso e o choro discreto. Como se Wenders também nos dissesse: ‘Ver também é pertencer’. Um dia perfeito seria, portanto, um dia no qual nos aventuramos por um novo mundo. E ele, de forma mágica, passa a nos constituir: somente assim, parafraseando Rimbaud, passamos a estar no mundo.

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