Há uma certa unanimidade em torno do nome do escritor russo Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881). Sua obra é uma dos marcos da literatura universal do século 19 e um dos principais pilares da literatura russa. De sua extensa produção, destaca-se o lendário romance ‘‘Os Irmãos Karamazov’’, escrito pouco antes de sua morte e considerado sua obra-prima.
A Editora 34 está dando início a um projeto que pretende trazer seus livros volta às livrarias brasileiras. O objetivo é publicar as obras completa de Dostoiévski traduzidas diretamente do russo. Os dois primeiros títulos, ‘‘Memórias do Subsolo’’ e ‘‘O Crocodilo’’, acabam de ser sair com tradução de Boris Schnaiderman. Na realidade trata-se de dois relançamentos – ambos foram publicados originalmente em 1961 pela Editora José Olympio.
‘‘O Crocodilo’’ traz a célebre novela em que Dostoiévski realiza uma crítica à burocracia narrando uma história carregada de absurdo e comicidade. Conta a história de Ivan, um funcionário público que, ao visitar uma espécie de circo de criaturas exóticas, acaba sendo engolido por um crocodilo. Achando confortável o interior do animal, passa a morar no local onde pode trabalhar tranquilamente e ainda ganhar uns trocados a mais como ‘‘animal dentro animal de zoológico’’. Publicado originalmente na revista ‘‘Epokha’’ dirigida por seu irmão, Mikhail Dostoiévski, o texto permaneceu inacabado com uma série de rascunhos anunciando os futuros caminhos da história.
‘‘O Crocodilo’’ ainda traz ‘‘Notas de Inverno Sobre Impressões de Verão’’, uma espécie de diário escrito com certo estilo jornalístico, em que Dostoiévski narra suas impressões da viagem que realizou pela Alemanha, França e Inglaterra. O problemas do ‘‘progresso’’ da Europa é visto através de uma ótica pessimista e ao mesmo tempo profética.
‘‘Memórias do Subsolo’’, dividido em duas partes, é um texto encharcado de filosofia que dispara farpas para lados da lógica humana. Uma narrativa que lembra (ou talvez até inspirou) as marteladas filosóficas de Friedrich Nietzsche. A novela é narrada por um homem que se considera um ‘‘doente negativista’’, um cético que refugiou-se em sua desrazão por não acreditar que as atitudes humanas façam sentido. Num tom amargo carregado pela ironia do escárnio, procura demolir todo e qualquer argumento do senso comum. Ergue um pensamento próprio e iconoclasta para, em seguida, negá-lo, julgá-lo medíocre e desprovido de verdade. Exercitando sua mente paradoxal, torna-se um metralhadora giratória que, no final de seu sinistro processo, acaba disparando contra si mesmo suas últimas balas: ‘‘O que é melhor, uma felicidade barata ou um sofrimento elevado?’’
A segunda parte de ‘‘Memórias do Subsolo’’, a arma do narrador deixa de ser suas palavras para se tornar relações interpessoais. Transforma-se em uma granada ambulante sem pino. Sentimentos como amor e compreensão são trabalhados como uma lâmina de dois cortes onde a frieza da realidade sempre aparece como uma pá de cal: ‘‘Ao homem comum é vergonhoso chafurdar na imundice, mas um herói paira demasiadamente alto para ficar completamente sujo; por conseguinte, lhe é permitida toda imundice.’’
Para Dostoiévski, cada argumento construído, meia provocação basta: ‘‘O homem é uma criatura volúvel e pouco atraente e, talvez, a exemplo do enxadrista, ame apenas o processo de atingir seu objetivo, e não o próprio objetivo. E – quem sabe? –, não se pode garantir, mas talvez todo o objetivo sobre a terra, aquele para o qual tende a humanidade, consista unicamente nesta continuidade do processo de atingir o objetivo, ou, em outras palavras, na própria vida e não exatamente no objetivo, o qual, naturalmente, não deve ser outra coisa senão que dois e dois são quatro, isto é, uma fórmula. Mas, na realidade, dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo da morte.’’ (M.L.)
•‘‘Memórias do Subsolo’’ de Fiódor Dostoiévski, Editora 34, tradução, prefácio e notas de Boris Schaiderman, 148 páginas, R$ 19,00.
•‘‘O Crocodilo - e Notas de Inverno Sobre Impressões de Verão’’ de Fiódor Dostoiévski, Editora 34, tradução, prefácio e notas de Boris Schaiderman, 166 páginas, R$ 19,00.