A relevância de um clássico imperecível no streaming
“A Tragédia de Macbeth”, que recupera a obra de Shakespeare na Appel TV, remete ao período mais expressionista da história do cinema
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 20 de janeiro de 2022
“A Tragédia de Macbeth”, que recupera a obra de Shakespeare na Appel TV, remete ao período mais expressionista da história do cinema
Carlos Eduardo Lourenço Jorge

A carreira dos irmãos Joel e Ethan Coen é dividida em quatro períodos bem específicos: a primeira etapa os posicionou como os melhores diretores de cinema independente dos Estados Unidos dos anos 1980 e 90, com grandes filmes como “Gosto de Sangue” (84), “História de Gangsters”, (90), “Barton Fink” (91), “Fargo” (96) e “O Grande Lebowski” (98). Já neste século, seguiu-se um flerte de declínio mainstream, com títulos menores como “O Amor Custa Caro” (2003) e “O Quinteto da Morte” (2004); um rápido renascimento criativo e com alguma pompa com “Onde os Fracos Não Tem Vez” (2007), “Queime Depois de Ler” (2008) e “Um Homem Sério” (2009) e, finalmente, uma série de filmes de menor importância mas agradáveis, como os dois westerns, “Bravura Indômita” (2010), e “A Balada de Buster Scruggs” (2018).
Hoje o ciclo foi finalmente encerrado. Em bons termos, mas encerrado. Porque Ethan decidiu deixar de dirigir, tanto porque confessou estar extremamente cansado do ambiente cinematográfico, como porque quer se dedicar só ao teatro. Joel optou por uma estreia solo que a priori pode parecer um tanto impessoal, pois adaptar “Macbeth”, uma das principais obras de William Shakespeare, sempre traz o problema de ter que se juntar a uma longa trilha de artistas anteriores, que fizeram o mesmo com a mais concisa e misteriosa tragédia do escritor inglês, cuja versão moderna inclui várias passagens adicionadas ao longo dos séculos desde sua estreia. Ainda hoje se acredita que o texto que temos à disposição é um resumo do que pode ter sido a obra original de Shakespeare, aparentemente mais longa do que a publicada em 1623 na coletânea sob o título de “Mr.William Shakespeare’s Comedies, Histories & Tragedies”.

As decisões tomadas por Joel Coen, hoje autor deste roteiro em completa solidão, são aparentemente imprudentes devido ao seu cunho arriscado e radical, embora felizmente tenham motivado e produzido um filme maravilhoso e praticamente único (até agora neste século XXI) no qual conseguiu, com sucesso, reinterpretar a vasta linhagem artística shakespeariana. A saber: antes de tudo, “A Tragédia de Macbeth” (The Tragedy of Macbeth, 2021), visível exclusivamente no streaming Apple TV, é uma proposta muito mais visual do que verbal, o que implica um distanciamento consciente de grande parte das adaptações anteriores, mais voltadas para os floreios do texto original do que para as possibilidades ou riquezas da encenação. Em segundo lugar, a fotografia do francês Bruno Delbonnel, profissional já presente em “A Balada de Buster Scruggs”, é um preto e branco que se situa a meio caminho entre o expressionismo alemão e as desbotadas abordagens estéticas bergmanianas.
Em terceiro, a realização evita por completo o insuportável fetiche do cinema contemporâneo com o realismo burguês/hollywoodiano, e opta pela artificialidade barroca do estúdio sem locações de qualquer espécie, uma abordagem que coloca em primeiro plano o design de produção, a direção de arte, o figurino e a trilha musical. O quarto ponto nos leva ao fato de que Coen, com seu olhar criteriosamente adaptador, sobrevoou mais da metade dos diálogos originais de Shakespeare (há recortes evidentes, para quem conhece o texto) sem se deixar levar pela óbvia beleza e incitação do texto, e construiu decisivamente um épico minimalista de ambição realista, política e militar, mas sem perder de vista a história e a moral condenatória (em relação à ganância do poder institucional). Assim, sem nenhum desvio narrativo, acréscimos e inovações, “A Tragédia de Shakespeare” é a transcrição mais fiel possivel da peça do Bardo, habitada pelos jogos de sombras, formas arquitetônicas extremas, claros-escuros e cenários que refletem a angústia, o tormento e a danação de seus personagens.

E finalmente o filme evita o perigoso hábito de escalar jovens atores para os papéis principais, Lord e Lady Macbeth, optando por veteranos como Denzel Washington e Frances McDormand, que entregam trabalhos portentosos – ele, em especial. Na dança sinistra do mal, a dupla de intérpretes brilha ao encontrar a linha que separa (e une) o histriônico do teatral e as sutilezas do cinematográfico, refugiando-se no desastre moral de seus personagens e os preenchendo de vida e miséria neste pesadelo doentio. Joel Coen ainda se apropria de forma despudorada e consumada de personagens periféricos (a dupla de assassinos e a bruxa multiplicada por três), que formam parte do bioma tragicômico e insólito dos filmes anteriores feitos em parceria com o irmão Ethan.
“A Tragédia de Macbeth”, desde já uma das melhores realizações nesta nefasta alvorada do século, é filme que se coloca à altura das duas melhores adaptações shakespearianas da história do cinema: a de Orson Welles (“Macbeth”, 1948) e de Akira Kurosawa (“Trono Manchado de Sangue”, 1957).
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