Não existe Woody Allen ruim. Por quê ? Bem, porque é absurdo, neste momento, deliberar se um de seus filmes é menos bom que os outros, se o-deste-ano-ou-do-último-ano. Esse julgamento faria sentido em outros momentos de sua carreira, para calibrar tons, qualidades, texturas, acertos, equívocos, maravilhas e misérias. Mas agora? Não há sentido em esquadrinhar anualmente o Woody Allen de plantão em busca de atonia, preguiça e estados vazios de inspiração.

Novo filme de Woody Allen aborda as relações afetivas, as contradições do amor, do cinema e da vida
Novo filme de Woody Allen aborda as relações afetivas, as contradições do amor, do cinema e da vida | Foto: Divulgação

O Allen mais recente é um rio. Com suas curvas, suas pedras, seu fluxo, torrencial ou escasso. Cada filme é um meandro, cada ano uma festa, um presente, ora luxuoso, ora barato. É preciso ver este “O Festival do Amor” como um afresco impressionista. Deixar-se levar, comemorar os acertos e torcer o nariz nos momentos de sonolência que podem eventualmente irritar você. Eles existem, é claro.

Woody Allen sempre fala sobre a mesma coisa ? Sim, confere. As fixações cinéfilas dele são as mesmas de sempre, com Bergman e Fellini no comando? Sim, além disso, se ele sempre gostou tanto deles, por que teria que mudar agora ? Quando ele filma em uma cidade que não seja Nova York, faz a coisa mais próxima de uma visita turística pelas ruas de Barcelona, Paris, Londres, Roma e, neste caso, San Sebastián. Sim, mas sempre há no argumento razões para que isso aconteça. A iluminação do seu último filme é mais mediterrânea ou mais atlântica ? Também é verdade, mas, embora conte histórias muito reais, o cinema de Allen sempre teve um pé no onírico, no fantasioso.

Há dois filmes nele, duas intenções, dois olhares. A ferramenta, ou o instrumento – a bela cidade litorânea de San Sebastián, no País Basco, os casais, os personagens , e a intenção – as homenagens cinéfilas, o preto e branco, os cineastas, a terceira idade. Eles não convivem particularmente em harmonia, mas nada, nem mesmo um derrame reumático, intimida Allen naquelas águas do rio em que é sempre importante poder se banhar. O personagem Rifkin é ele, claro, e é um prazer que use o rosto de Wallace Shawn, um cúmplice essencial de tantos anos, uma amizade tão sólida forjada na vida e no cinema. A propósito, e de volta ao assunto cartões-postais: não consigo entender a obsessão de repreender Allen uma e outra vez sobre a idéia de cartões-postais. Por que algumas pessoas odeiam tanto as locações de várias cidades diferentes no cinema de Allen? As de Londres parecem melhores para você? As de Paris? "Se eles retratarem aquilo que é meu, vai parecer um cartão-postal para mim." Provincianismo mais reverso...

A ação do filme se passa durante um festival de cinema que funciona como um lugar emocional, não geográfico
A ação do filme se passa durante um festival de cinema que funciona como um lugar emocional, não geográfico | Foto: Divulgação

“O Festival do Amor” é delícia outonal, um filme em que Allen fala sobre o cinema de que gosta e do que não gosta, sobre as relações afetivas, as contradições do amor, do cinema e da vida. A ação se passa durante um festival de cinema, uma simples desculpa, um lugar emocional e não geográfico, para localizar suas eternas dúvidas metafísicas. As citações (para “Cidadão Kane”, “O Anjo Exterminador, “Jules e Jim”, “Fellini Oito e Meio”, “O Sétimo Selo”, “Acossado”, “Persona”, “Morangos Silvestres”' e “Um Homem e uma Mulher”) são muito óbvias, mas também nos dizem muito sobre a fidelidade de Allen a certos conceitos. Um programa nostálgico, romântico e irônico em que o cineasta filma seu manual de estilo de referências literárias e cinematográficas, acrescentando o toque lúdico das aparições de Alfred Hitchcock.

Há muito respeito quando ele reconstrói momentos básicos desses títulos, mas também paródia e fina ironia: o aparecimento da Morte do famoso filme de Bergman nos traz de volta ao Allen de seus livros indispensáveis, como “Sem Plumas”, “Que Loucura”, “Fora de Órbita”, coletâneas de histórias de humor e ensaios, inicialmente publicadas na revistra New Yorker nos anos 1970 e 80. Se boa parte dos últimos trabalhos do cineasta – exceção a “Match Point” (2005) e “Blue Jasmine” (2013), suas obras-primas dos últimos vinte anos – deixou um gostinho de hors d'oeuvres (agradável aos olhos e ao paladar como aperitivo, mas sem alimentar o estômago cinéfilo), devemos admitir que “O Festival do Amor” é uma surpresa muito agradável. Quase um testamento artístico com o melhor legado para o público: um amor absoluto pelo cinema e um amor incondicional pelo Festival de San Sebastian, que ele declara para inveja de Cannes, que também o cortejou em muitas edições.

Comédia alegre e inconsequente mas com brilho, ela nos ajuda a continuar nesta existência meio sem sentido, cheia de contratempos, traições, esnobismo, mentiras e expectativas não cumpridas: o material perfeito para animar uma conversa no sofá. Aqui não do streaming, mas do psicólogo. Sim, você sabe, pura franquia Allen.

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Imagem ilustrativa da imagem A pura e boa franquia Woody Allen