Francelino França
De Londrina
Numa manhã fugidia do dia 9 de abril de 1985, a escritora Cora Coralina, no limiar dos 96 anos, faleceu serenamente, num dos 16 cômodos da Casa Velha da Ponte, na cidade de Goiânia. As muletas, leves e verticais, escoradas na parede, serviram de testemunhas para o final de uma longa existência.
Assim era Cora Coralina: uma mulher profundamente otimista, forte, decidida, extremamente inteligente. Ostentou o título de Doutora ‘‘Honoris Causa’’, pela Universidade Federal de Goiás. Foi eleita ‘‘intelectual do ano’’, em 1983, sendo contemplada com o prêmio Juca Pato, conferido pela União Brasileira dos escritores. Conquistou a admiração de Carlos Drummond de Andrade. O poeta, quando conheceu os escritos de Cora, escreveu: ‘‘Ela é um ser de coração inumerável. Seu livro ‘Vintém de Cobre’ é, para mim, moeda de ouro.’’
Reconhecimento, carinho e atenção não faziam parte da vida de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, a Aninha, nome de registro de Cora Coralina. Assim era Aninha: triste, nervosa e feia. De rosto espalmado e amarelado, de pernas moles, sempre caindo à toa. ‘‘Aninha, a menina boba da casa, obtusa, do banco das mais atrasadas, se desencantou em Cora Coralina’’, confessou.
Aninha nasceu em Vila Boas de Goiás, em 1889. De seus anos de escola, chegou até o quarto livro. ‘‘Nem recreio, nem exames./Nem notas, nem férias. Sem cânticos, sem merenda...’’ Aninha escandalizava as famílias tradicionais da cidade ao publicar seus escritos nos jornais, com apenas 14 anos. Em 1910, casou-se com um advogado e transferiu-se para São Paulo.
Viveu no Estado de São Paulo por 45 anos. Viúva, vendeu livros, e no interior paulista, vendia linguiça caseira, banha de porco e doces. Aos 50 anos, simplesmente, perdeu o medo, nasceu de novo. Passou a usar o codinome Cora Coralina. ‘‘Cora vem de coração e coralina é a cor vermelha.’’
Sempre escrevendo e guardando esses escritos, aos 70 anos, em 1965, conseguiu publicar seu primeiro livro. Em 1976, veio sua segunda obra ‘‘Meu Livro de Cordel’’. Sete anos depois, publicou ‘‘Vintém de Cobre’’. Livros escritos no tarde da vida, lapidados na sapiência dos anos. ‘‘Cora Coralina traz para a poesia, ao mesmo tempo simples e comovente, o sabor da experiência de vida colhida ao longo de anos e anos. Sua obra poética é um inventário de si mesma’’, escreveu o crítico Nilzo Scalzo, sobre o sucesso da autora.
Cora Coralina vislumbrou no penoso passado de Aninha a justa medida dos seus versos livres. Na pobreza mansa, ela cresceu com os seus medos e com chá de raiz de fedegoso. O retorno à infância serviu para aplacar, mesmo no tarde da vida, as reminiscências doridas do tempo do vintém. Aninha, a menina magricela, moleirona, desajustada, abobada e rejeitada deu a Cora Coralina um otimismo imorredouro. Nunca escreveu uma palavra para lamentar a vida. Perseverar no intento de se tornar escritora deu rasteira no destino.