A paternidade é de todxs

Pai é quem cria? Segundo a máxima popular, sim. É quem cria, dá atenção, amor, carinho, educação, transmite valores e acolhe. A missão de ser pai é nobre e tomar para si tal atribuição também. Por meio de uma fertilização in vitro, o ator Thammy Miranda realizou, há seis meses, o sonho de ser pai. Ao estrelar a campanha de Dia dos Pais de uma marca de cosméticos, foi alvo de críticas e a empresa de boicotes,mas muitas pessoas enxergaram com bons olhos a homenagem. As discussões tomaram as redes sociais e não faltaram argumentos em torno do tema paternidade.

A história de Thammy se encaixa na de pessoas que, desde crianças, não se enxergam como nasceram. Thammy nasceu menina, mas nunca se sentiu assim. O ator, casado com a digital influencer Andressa Ferreira não revela se fez a polêmica cirurgia de redesignação sexual. Mas já declarou publicamente: “Eu me sentia um homem preso no corpo de uma mulher." Por meio de tratamento hormonal, o ator considerado transgênero não mudou seu primeiro nome para atender a um pedido de seu pai. Já seu filho se chama Bento e foi com ele que o ator apareceu num anúncio de cosméticos.

Do ponto de vista da psicóloga Sirlene Negrão, 37 anos, as reações tão distintas de usuários de redes sociais são desencadeadas por alguns fatores, como sentirem na pele algum tipo de preconceito ou violência com familiares ou amigos. "Quando nos posicionamos acerca da sexualidade humana temos que ter em mente que não é uma escolha, mas sim uma necessidade interna da pessoa". Segundo Negrão, os discursos que permeiam assuntos de sexualidade estão vinculados a discursos moralistas. "Por isso a necessidade de desvincular a sexualidade como regra para ser aceito, capacitado para algo ou até mesmo digno. É imprescindível o reconhecimento dos diversos níveis de violência, para abrangermos a questão estudada em seus variados contextos. Boicotar uma empresa que escolhe um homossexual ou transgênero para fazer uma propaganda, incentivo ainda mais a perpetuação do preconceito, em um dos países que está no topo da violência contra homossexuais", observa.

A empresária e formanda de Arquitetura, Tatiana Cardoso Medeiros, 43 anos, considera a campanha uma evolução. Atualmente solteira, tem quatro filhos, Yan, de 18 anos, Gabriell, 16, Maria ,12 e Lorena, 5. "A Natura está aberta e atualizada as novas famílias que se formam. Devem ter feito um levantamento e sabem o poder de consumo deles". Medeiros pensa que a empresa está agindo como empresa. "Já os preocupados em consertar o mundo, segundo suas crenças, usam a oportunidade para se posicionarem como moralistas. O pai dos três primeiros filhos da empresária é falecido. Já do pai de Lorena, ela é separada e considera essencial celebrar a data. " A figura masculina do pai é essencial na vida dos filhos, mesmo ausente enquanto vivo, meus filhos eram felizes por terem tido um pai. Cabe a nós que nos separamos não quebrar isso, desdenhando ou reclamando, pois pra eles esse pai foi importante", expressa.

A estudante de Direito Julia Barotto, 21 anos, acredita que as pessoas usam da desculpa de que é errado aos olhos de Deus para serem preconceituosos. "Se fosse apenas pela justificativa de que Deus não se agrada, não haveria discurso de ódio e não geraria tanta polêmica. Eu não concordo com a campanha, porém boicotar não seria a solução. Outra questão bem interessante é a seguinte: e se fosse uma mulher na campanha simbolizando o Dia dos Pais?", questiona. "Visto que muitos pais abandonam seus filhos e a mãe assume o papel duplo, geraria a mesma repercussão? É algo a se pensar. Você não precisa concordar com a campanha e nem apoiar, mas também não precisa ser preconceituoso nem ofender os outros. Com certeza não é o que Deus gostaria que você fizesse isso", diz.

A coach parental Juliana Flores, 38 anos, é casada e mãe de Ana Clara, 10 anos e Isaac, 7. De seu ponto de vista, a abordagem da campanha gera confusão. "Querem impor algo que para muitos 'não é normal' e isso é complicado." Flores concorda com o ponto de vista do Pastor Cláudio Duarte sobre a Thammy em declaração feita no programa de Raul Gil e faz das palavras dele, as suas: "Eu tenho valores e não vou abrir mão deles. Não acho certo o casamento entre gays, mas isso não nos torna inimigos. Eu respeito, podemos sentar, conversar, você pode visitar a igreja que pastoreio. Mas essa extremidade absurda transformou o mundo no que está. Eu nunca vou negociar com divórcio, com adultério, com homossexualismo, mas vou amar e respeitar."

DUAS FAMÍLIAS DIFERENTES

O servidor público Samir Pereira, 50 anos, é pai de Samir, 17 anos e Mariana, 12. Pereira não se sente desconfortável ao expor seu pensamento e nem considera o tema delicado. "Sempre passei para os meus filhos que existem dois sexos, masculino e feminino, cada um com suas características. Do meu humilde ponto de vista, uma mulher nunca vai conseguir ser pai e um pai nunca vai conseguir ser mãe. Você pode querer fazer a função, mas Thammy sendo mulher, ela pode ser no máximo mãe do filho dela. Deveria haver coerência da indústria cosmética para colocar representantes no Dia dos Pais, pois errou ao colocar na campanha uma mulher que se transformou em homem - mas não é homem por natureza. Considero uma falta de respeito com os milhares de pais que são pais de verdade".

A analista de planejamento e conteúdo de produção de laboratório, Fabiana Lacerda, 35 anos, tem quatro filhos. Nayra de 16 anos, Glauber 14, Enzo 7 e Yolanda, de seis meses - essa gerada por sua companheira, a vendedora Angélica Félix da Silva, 35 anos, com quem vive há três anos, formando um casal. "Angélica sempre foi assumida e se revelou uma boa madrasta. De repente, foi aflorando nela o desejo por um bebê e embora eu já tivesse três filhos, não poderia negar esse direito a ela." O casal optou pela inseminação caseira. "O doador do material genético é um amigo nosso e a Yolanda sempre saberá a verdade, conhece o pai, e estamos aguardando os trâmites jurídicos para fazer a inclusão de meu nome como mãe também." Yolanda assim tem duas mães que não deixam de ser pais também, assumindo todas as responsabilidades.

A acolhida do restante da família foi muito positiva. "Estão todos em festa e curtindo muito. Sempre transmiti valores a meus filhos de respeito ao próximo. Eu aprovo a campanha e acredito que tenha mexido com a masculinidade de alguns. Mas é preciso lembrar que é Dia dos Pais e não dos Homens. Eu ouvi de um conhecido que a campanha não o representa porque é cristão", expõe. Fabiana relata ainda que tem o apoio dos pais de seus filhos e vivem em harmonia. "Não existe quem faz um papel específico. Trocamos chuveiro, vamos ao mercado, cozinhamos e a chegada da Yolanda me trouxe experiências diferentes. Ela tem refluxo e tivemos que sair de madrugada três vezes logo no começo para socorrê-la de afogamento. Hoje toma um leite especial e em casa não tem isso de quem é mais ou menos," conclui Fabiana, enfatizando a responsabilidade de ambas em relação à filha.

Nota:

Para identificar o gênero não binário (feminino/ masculino) usamos a palavra todxs no titulo da matéria, grafia que tem sido adotada para se referir à diversidade de gêneros. A palavra também pode ser encontrada com @ (tod@s) e com a letra “e” (todes).