“A Musa de Bonnard”, amor e arte no Cine Ouro Verde
Filme é dirigido por Martin Provost, um apaixonado pela pintura que explora muito bem esta arte também nas telas
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 01 de agosto de 2024
Filme é dirigido por Martin Provost, um apaixonado pela pintura que explora muito bem esta arte também nas telas
Carlos Eduardo Lourenço Jorge/ Especial para a Folha

“Muitas vezes tenho esse sonho estranho e penetrante com uma mulher desconhecida, que amo e que também me ama”. É a lírica do francês Paul Verlaine, inserida no início de “A Musa de Bonnard”, uma história de amor e arte com lançamento no Cine OuroVerde na próxima segunda-feira (5).
O filme, de 2023, é dirigido por Martin Provost, um apaixonado pela pintura, como já demonstrou com o consagrado “Séraphine”, de 2008. Agora, o cineasta mais uma vez inspirou-se em fatos históricos reais para pintar o retrato vigoroso, alegre e refrescante de um casal atípico: um artista e sua musa envolvidos pela paixão e pela criação artística, as chaves para uma existência boêmia. Ah, antes que me esqueça: o filme exala pura francofilia.
“Por que são sempre as mulheres que posam nuas para os homens? Porque são sempre os homens que pintam as mulheres." Estamos em 1893, num modesto estúdio parisiense. Tudo começa com o esboço resultante de um encontro casual na rua entre um jovem pintor em ascensão e uma bela mulher que trabalha para um fabricante de flores artificiais. Pierre Bonnard (Vincent Macaigne) desenha a mulher que está sentada atrás dele.
Desenha e pinta em papel ou tela pregados diretamente na parede, sem precisar de cavalete. Sua modelo – cujo nome nem ele nem nós descobrimos até que tenham cedido ferozmente a uma poderosa (e prosaica) atração carnal, é Marthe (Cecile De France). Ele estudou Direito mas, juntamente com os seus amigos – cujos nomes também ainda não conhecemos –, pretende “revolucionar a pintura moderna”. E le será um dos mais notáveis pós-impressionista. Logo os espectadores (os mais sensíveis) vão lançar um olhar comovente sobre este “Bonnard, Pierre et Marthe”, um olhar cúmplice sobre o entrelaçamento entre arte e este intenso e teimoso romance.

DIFERENÇAS SOCIAIS
É amor à primeira vista entre Pierre e Marthe, cujas origens sociais e personagens. estão a anos-luz de distância, mas compartilham o mesmo desejo de se libertarem - ela da vida sem-teto que leva e ele das convenções da classe média. Contudo, enquanto Marthe esconde o amante de sua familia (uma irmã com filhos dependentes e a mãe idosa que mora em um quarto de empregada,) Pierre apresenta Marthe ao seu círculo de amigos – o grupo de “nabis” (como se auto-intitulam) que quer revolucionar a pintura – e à sua rica e excêntrica amiga e patronesse Mísia (Anouk Grinberg), que não demonstra qualquer interesse por Marthe, considerando-a "louca", um puro capricho passageiro que está prejudicando a florescente carreira de Pierre. E, embora este raro e natural exemplo de mulher represente na verdade uma oportunidade incrível para Bonnard, viver à sombra do pintor (e dos seus modelos mais jovens) não é propriamente um mar de rosas...
O roteirista e diretor Martin Provost, cujo relato de 2008 sobre a peculiar artista marginal Seraphine ganhou o prêmio de melhor filme e seis outros prêmios importantes no César, evita a maioria das armadilhas potenciais que tornaria esse material rígido ou didático. Macaigne, que interpretou muitos personagens sem maiores repercussões, parece a princípio uma escolha estranha para o papel, mas imediatamente dissipa qualquer dúvida.
De France é como sempre ótima e eles formam um casal completamente convincente, repleto de cumplicidade lúdica, mal-entendidos, mágoas e triunfos.
Marthe quer ser mãe e Bonnard não quer ser um mau pai. Ele está apaixonado e inspirado por ela, até que a mera passagem do tempo o deixa inquieto.
Pierre gradualmente se envolve com Renée (Stacy Martin), uma estudante de Belas Artes muito mais jovem, criando uma fissura, já que ninguém naquele triângulo sabe como lidar com uma situação aparentemente improvável naquele inicio do século 20.
DEMAIS ATUAÇÕES
No que diz respeito às demais performances, Anouk Grinberg é uma delícia volúvel como Misia Sert, o espírito livre anfitrião que pode ter passado por muitas camas, mas inclusive ajudando a apoiar financeiramente Bonnard até que sua reputação fosse estabelecida. Marthe, que em certo momento de amargura se revela uma pintora surpreendentemente original, é serenamente penetrada e consumida pela terceira idade.
O processo cênico do envelhecimento, os efeitos da maquiagem são razoavelmente bons. E os blocos de construção cinematográficos estão belamente distribuídos. Quando Claude Monet (André Marcon) e sua esposa chegam para um piquenique (há uma frase engraçada e falsamente humilde sobre como “o governo notou meus nenúfares e quer exibi-los em um porão”), tanto há discussão de cada item comestível na cesta de piquenique assim como qualquer coisa relacionada à arte. E os exteriores são sublimes, em cores e formas.
Alguém pode achar que há muitas cenas de pessoas pulando nuas no Sena para se divertir ou se refrescar. Mas esta história de pinceladas fortes e emoções fortes – e como os lugares evocam sentimentos e memórias – relembra sem maior esforço uma época em que as aulas de “bem viver” não eram necessárias para se conectar com a natureza. Porque a natureza importava tanto quanto o belo criado pelo homem.

