De um lado, o passado pode ser um chiclete gasto e sem gosto – daqueles que os velhos sentem saudades e as crianças mascam com displicência por falta do que fazer. De outro, o presente pode ser um chiclete jogado no asfalto onde o sapato, sob o sol do meio-dia, experimenta sua constrangedora capacidade elástica. Entre uma coisa e outra, a morte semeia corpos mutilados com explicações em decomposição. Nesse quadro, o presente assume a forma de um passado exagerado. Uma força que coloca a vida na rota irregular das dores do destino.
Essa é a impressão que causa ‘‘Bandeiras Pálidas’’, novo livro de Michael Ondaatje que acaba de ser publicado pela Editora Companhia das Letras. Um daqueles romance em que o escritor pede licença, com sutileza e lentidão, para entrar na mente do leitor e apresentar uma história sobre a vida em seu lado destrutivo e, ao mesmo tempo, revelador.
‘‘Bandeiras Pálidas’’ conta a história de Anil, uma antropóloga nascida do Sri Lanka que ainda jovem mudou-se para o Ocidente. Vivendo na Europa e os Estados Unidos, recebe a missão de voltar à sua terra natal como ativista em defesa dos direitos humanos. Sua incumbência é analisar ossadas das vítimas dos massacres da guerra civil.
Michael Ondaatje apresenta como cenário de ‘‘Bandeiras Pálidas’’ o drama vivido pelo Sri Lanka (antigo Ceilão) desde a década de 80, onde duas guerra civis concorrem para ver quem enterra mais corpos. De um lado uma guerra política, em que as forças armadas executam seus opositores de maneira cruel e impunemente. De outro lado uma guerra étnica, com grupos rivais promovendo massacres regulares. O terror, de ambos lados, deixa evidente que o silêncio provocado pelo medo é a conduta cotidiana.
Nesse cenário repleto de sangue, o autor apresenta personagens procurando conviver com as próprias dores e as dores sociais. Uma situação em que as emoções são forjadas pelo passado diante da incapacidade de alteração do presente. Assim, todo e qualquer desenvolvimento pessoal acontece de maneira áspera e tortuosa.
O próprio Ondaatje nasceu no Sri Lanka, em 1943. Ainda criança mudou-se para a Inglaterra e, em seguida, imigrou para o Canadá onde vive até hoje. Embora seja mais conhecido como romancista, sua produção poética é mais extensa. Publicou onze livros de poesia e apenas três romances. Seus versos ainda permanecem inéditos em português, mas os romances foram todos publicados no Brasil. Primeiro ‘‘Na Pele de Um Leão’’ (Editora 34, 1998), depois ‘‘O Paciente Inglês’’ (Editora 34, 1994) que lhe rendeu vários prêmios literários e popularidade após ser transformado em filme por Anthony Minghella, e agora ‘‘Bandeiras Pálidas’’ (Anil’s Ghost).
À primeira vista, a narrativa de Ontaajde parece comum, sem grandes surpresas, mas no decorrer das páginas, a poética vai sendo erguida de maneira calma e sutil. Um tipo de evolução que elimina todos as formas de dificuldade de translação dos sentidos. Uma espécie de força ganha corpo homeopaticamente e se revela em um tranquilo furacão. Um furacão interno que está fadado a um destino paradoxal: não de explodir, mas de implodir fazendo uso de uma potência poética.
No caso de ‘‘Bandeiras Pálidas’’, o escritor apresenta uma poética totalmente interna que segue o ritmo da vida em suas pulsações infinitas – onde é impossível ter uma real dimensão do todo antes que o coração dê sua última diástole. E, quando isso acontece, as vidas que acompanharam os caminhos dos últimos batimentos levam consigo todo a carga sensorial de tal feito. Isso cria elos de uma cadeia que geralmente não está presente em best-sellers: a poética do batimento que potencializa todas as reverberações decorrentes. Ontaatje consegue ser leve focalizando justamente morte e destruição. Uma leveza que não elimina o impacto de seu conteúdo, mas oferece uma postura alimentada pela elegância.
No final de ‘‘Bandeiras Pálidas’’ a narrativa desloca personagens secundários para um espaço primordial da história. Uma busca de síntese onde a vida se revela, em maior brilho, quando o homem percebe sua existência interior aprisionada por fatores externos. Nesse instante atinge a percepção que, seja em nível interno ou externo, prazer e sofrimento sempre serão um punhal cravado no peito do passado.
•‘‘Bandeiras Pálidas’’ de Michael Ondaatje, Editora Companhia das Letras, tradução de Paulo Henrique Britto, 352 páginas, R$ 29,50.