A maternidade: novos conceitos e as transformações culturais
Em seu novo livro, “Manifesto Antimaternalista”, Vera Iaconelli desvenda as contradições sociais da maternidade nos dias de hoje
PUBLICAÇÃO
sábado, 28 de outubro de 2023
Em seu novo livro, “Manifesto Antimaternalista”, Vera Iaconelli desvenda as contradições sociais da maternidade nos dias de hoje
Marcos Losnak/ Especial para a Folha
Algumas famílias comportam variadas mães. Comportam a mãe que teve o bebê, a mãe que amamentou o bebê, a mãe que criou a criança, a mãe que ensinou a criança, a segunda mãe e outras mais. Algo como uma comunidade de mães, um coletivo de mães cuidando da futura geração.
Mas também existem as famílias que seguem o discurso hegemônico de que ‘mãe é uma só’, ou ‘mãe só existe uma’. Neste caso, a preferência da filiação recai sobre a do filho biológico de casais heterossexuais abastados e devidamente casados.
Em seu novo livro, “Manifesto Antimaternalista”, a psicanalista paulista Vera Iaconelli coloca o dedo na ferida que separa a idealização da maternidade e a realidade da maternidade no Brasil. Lançado pela editora Zahar, a obra questiona o discurso maternalista e apresenta novas leituras psicanalíticas sobre o assunto a partir das ideias de Sigmund Freud (1856 - 1938), Jacques Lacan (1901 - 1981) e D. W. Winnicott (1896
- 1971). Também estabelece a diferenciação necessária entre gestar um bebê, assumir o parentesco de uma criança e cuidar de uma nova vida.
O DISCURSO MATERNALISTA
Vera Iaconelli apresenta o discurso maternalista da seguinte maneira: “O discurso maternalista se ancora na ideia de que a mulher é naturalmente talhada para ser mãe e que o cuidado que ela oferece ao filho – mas também aos familiares em geral – é insubstituível, por ser de uma qualidade única. Em função disso cabe ao Estado, à filantropia e ao restante da sociedade ‘ajudá-la’ a realizar o que é entendido como sendo de competência dela, natural e insubstituível.”
E vai além: “O maternalismo seria o discurso que a sociedade adota para justificar e dar apoio às mulheres – mas não todas – historicamente reduzidas à função de mães e trabalhadoras domésticas não remuneradas, no exercício de tarefas imprescindíveis para a consolidação e manutenção do capitalismo e da reprodução social. Dito de outra forma, estamos diante do ponto culminante de uma longa cadeia de eventos políticos e sociais que promovem o discurso que atribui unicamente à mulher o papel de cuidadora – mesmo que por vezes acumule também o papel de provedora –, a fim de assim desincumbir a sociedade da responsabilidade pela economia reprodutiva e pelas próximas gerações. Algo que não tem paralelo no mundo masculino, no qual o homem é antes de tudo um homem e, contingencialmente, pai, e para quem a paternidade é reconhecida mesmo quando ele se ausenta de suas responsabilidades.”
A CULPA É SEMPRE DAS MÃES
“Manifesto Antimaternalista” elenca uma série de fatores para mostrar como a sociedade brasileira não possui muito interesse em cuidar das novas gerações. Essa missão é colocada nas mãos das mães que, como mulheres, ocupam posição subalterna n uma sociedade patriarcal e misógina. E se ocorrer algum problema, a culpabilidade sempre recairá nas costa das mães, não da sociedade (nem do Estado) que negligenciou responsabilidades e desprezou o sentido coletivo de cuidados para com bebês e crianças.
Segundo Veta Iaconelli, torna-se necessário entender as falácias que envolvem as distinções entre papéis e funções: “O discurso maternalista, que faz com que o exercício da parentalidade sempre penda para o lado das mães, se municia de algumas falácias, entre elas a confusão entre papéis de funções. Papéis são convenções que se organizam a partir da classe social, do parentesco, do gênero e da raça. Que a mulher cuide do bebê enquanto o homem assume a provisão financeira é um arranjo, entre outros, que diz respeito ao papel. Acordos de quem busca na escola, cuida da
alimentação ou falta no trabalho quando a criança fica doente são convenções sociais marcadas pelo gênero. Papéis mudam ao sabor da época, da localidade e da cultura familiar. Que a mulher negra deixe seus filhos sozinhos para cuidar dos filhos das famílias brancas abastadas é um arranjo que diz respeito a uma sociedade de classes racista.”
'MÃE É UMA SÓ'
Voltando ao discurso hegemônico de que ‘mãe só exite uma’, Vera Iaconelli expõe a responsabilização acumulativa sobre as mães: “Aquilo que passou a ser chamado pelo senso comum de ‘carga mental materna’ explicita que, embora a mulher possa delegar o ato de cuidar, permanece a ideia de que ela até insubstituível e a verdadeira responsável por tudo o que acontece com a prole. Mesmo quando se ausenta, ela é considerada – e, frequentemente, considera a si mesma – como aquela que não está cumprindo inteiramente com suas obrigações. Lembremos que o ideal maternalista está baseado no paradoxo da mulher que se instrui para cuidar da casa, trabalha para ajudar a família, mas não delega a maternidade.”
“Manisfesto Antomaternalista” alerta que a maternidade idealizada está comprometendo o bem estar das futuras gerações: “Vivemos um ponto de inflexão no qual a maternidade idealizada, que não corresponde às necessidades e possibilidades de mães e crianças, desemboca numa geração desassistida. Para a questão perene sobre o cuidado com as próximas gerações, nossa sociedade responde com um modelo anacrônico baseado na inteira responsabilização das mulheres – resposta que já era insustentável no passado e que agora tende ao colapso.”

SERVIÇO
“Manifesto Antimaternalista – Psicanálise e Políticas da Reprodução”
Autora – Vera Iaconelli
Editora – Zahar
Páginas – 256
Quanto – R$ 49,90 (papel) e R$ 29,90 (e-book)

