Algumas famílias comportam variadas mães. Comportam a mãe que teve o bebê, a mãe que amamentou o bebê, a mãe que criou a criança, a mãe que ensinou a criança, a segunda mãe e outras mais. Algo como uma comunidade de mães, um coletivo de mães cuidando da futura geração.

Mas também existem as famílias que seguem o discurso hegemônico de que ‘mãe é uma só’, ou ‘mãe só existe uma’. Neste caso, a preferência da filiação recai sobre a do filho biológico de casais heterossexuais abastados e devidamente casados.

Em seu novo livro, “Manifesto Antimaternalista”, a psicanalista paulista Vera Iaconelli coloca o dedo na ferida que separa a idealização da maternidade e a realidade da maternidade no Brasil. Lançado pela editora Zahar, a obra questiona o discurso maternalista e apresenta novas leituras psicanalíticas sobre o assunto a partir das ideias de Sigmund Freud (1856 - 1938), Jacques Lacan (1901 - 1981) e D. W. Winnicott (1896

- 1971). Também estabelece a diferenciação necessária entre gestar um bebê, assumir o parentesco de uma criança e cuidar de uma nova vida.

O DISCURSO MATERNALISTA

Vera Iaconelli apresenta o discurso maternalista da seguinte maneira: “O discurso maternalista se ancora na ideia de que a mulher é naturalmente talhada para ser mãe e que o cuidado que ela oferece ao filho – mas também aos familiares em geral – é insubstituível, por ser de uma qualidade única. Em função disso cabe ao Estado, à filantropia e ao restante da sociedade ‘ajudá-la’ a realizar o que é entendido como sendo de competência dela, natural e insubstituível.”

E vai além: “O maternalismo seria o discurso que a sociedade adota para justificar e dar apoio às mulheres – mas não todas – historicamente reduzidas à função de mães e trabalhadoras domésticas não remuneradas, no exercício de tarefas imprescindíveis para a consolidação e manutenção do capitalismo e da reprodução social. Dito de outra forma, estamos diante do ponto culminante de uma longa cadeia de eventos políticos e sociais que promovem o discurso que atribui unicamente à mulher o papel de cuidadora – mesmo que por vezes acumule também o papel de provedora –, a fim de assim desincumbir a sociedade da responsabilidade pela economia reprodutiva e pelas próximas gerações. Algo que não tem paralelo no mundo masculino, no qual o homem é antes de tudo um homem e, contingencialmente, pai, e para quem a paternidade é reconhecida mesmo quando ele se ausenta de suas responsabilidades.”

A CULPA É SEMPRE DAS MÃES

“Manifesto Antimaternalista” elenca uma série de fatores para mostrar como a sociedade brasileira não possui muito interesse em cuidar das novas gerações. Essa missão é colocada nas mãos das mães que, como mulheres, ocupam posição subalterna n uma sociedade patriarcal e misógina. E se ocorrer algum problema, a culpabilidade sempre recairá nas costa das mães, não da sociedade (nem do Estado) que negligenciou responsabilidades e desprezou o sentido coletivo de cuidados para com bebês e crianças.

Segundo Veta Iaconelli, torna-se necessário entender as falácias que envolvem as distinções entre papéis e funções: “O discurso maternalista, que faz com que o exercício da parentalidade sempre penda para o lado das mães, se municia de algumas falácias, entre elas a confusão entre papéis de funções. Papéis são convenções que se organizam a partir da classe social, do parentesco, do gênero e da raça. Que a mulher cuide do bebê enquanto o homem assume a provisão financeira é um arranjo, entre outros, que diz respeito ao papel. Acordos de quem busca na escola, cuida da

alimentação ou falta no trabalho quando a criança fica doente são convenções sociais marcadas pelo gênero. Papéis mudam ao sabor da época, da localidade e da cultura familiar. Que a mulher negra deixe seus filhos sozinhos para cuidar dos filhos das famílias brancas abastadas é um arranjo que diz respeito a uma sociedade de classes racista.”

'MÃE É UMA SÓ'

Voltando ao discurso hegemônico de que ‘mãe só exite uma’, Vera Iaconelli expõe a responsabilização acumulativa sobre as mães: “Aquilo que passou a ser chamado pelo senso comum de ‘carga mental materna’ explicita que, embora a mulher possa delegar o ato de cuidar, permanece a ideia de que ela até insubstituível e a verdadeira responsável por tudo o que acontece com a prole. Mesmo quando se ausenta, ela é considerada – e, frequentemente, considera a si mesma – como aquela que não está cumprindo inteiramente com suas obrigações. Lembremos que o ideal maternalista está baseado no paradoxo da mulher que se instrui para cuidar da casa, trabalha para ajudar a família, mas não delega a maternidade.”

“Manisfesto Antomaternalista” alerta que a maternidade idealizada está comprometendo o bem estar das futuras gerações: “Vivemos um ponto de inflexão no qual a maternidade idealizada, que não corresponde às necessidades e possibilidades de mães e crianças, desemboca numa geração desassistida. Para a questão perene sobre o cuidado com as próximas gerações, nossa sociedade responde com um modelo anacrônico baseado na inteira responsabilização das mulheres – resposta que já era insustentável no passado e que agora tende ao colapso.”

Imagem ilustrativa da imagem A maternidade: novos conceitos e as transformações culturais
| Foto: Divulgação

SERVIÇO

“Manifesto Antimaternalista – Psicanálise e Políticas da Reprodução”

Autora – Vera Iaconelli

Editora – Zahar

Páginas – 256

Quanto – R$ 49,90 (papel) e R$ 29,90 (e-book)