A MAGIA DE UM BEST SELLER
PUBLICAÇÃO
sábado, 13 de maio de 2000
Wilson Bueno De Curitiba Especial para a Folha2
Quando, enfiada num café do centro de Edimburgo, a pacata capital da Escócia, a professora Joanne Rowling compunha os primeiros capítulos da saga de Harry Potter, o menino mágico, jamais poderia supor que poucos meses depois de concluído o livro, ele se converteria, por estes desígnios inexplicáveis do destino, num dos maiores best sellers de todos os tempos. Harry Potter e a Pedra Filosofal, mais os três títulos da série, que se seguiram a ele, pasme, leitor, já venderam, juntos, em pouco menos de três anos, a fabulosa quantia de 32 milhões de exemplares, em 35 idiomas, convertendo-se num sucesso sem precedentes na história editorial do planeta.
Concebido a princípio como um livro destinado, no máximo, à faixa de leitores juvenis, já que sua intenção primeira era a de ser uma história para crianças de até dez anos, Harry Potter e a Pedra Filosofal acabou se tornando um raconto para leitores de todas as idades - o que contribuiu decisivamente para que se transformasse no best seller em que se transformou. O mercado livreiro o disputa como a um raro ouro editorial; Hollywood já entrou decisivo na briga pelos direitos de sua conversão ao cinema, com o poderoso Steven Spielberg à frente, o que não é novidade em se tratando de operações do gênero, e até os produtores de histórias em quadrinhos se organizam para levar a história de Harry Potter ao desenho no papel.
Como explicar semelhante fenômeno? Em vão comunicólogos, teóricos de literatura, especialistas em literatura infanto-juvenil, marquetólogos e publicitários buscam uma explicação ao menos razoável para o bombástico sucesso das histórias de Harry Potter, e não precisa dizer que, a exemplo da imprevisibilidade de todo sucesso que se preze, não encontram nenhuma. Já chamado de O Fenômeno, Harry Potter e suas proezas correm o mundo - do ídiche ao japonês, do servo-croata ao tibetano, passando pelas línguas ditas cosmopolitas - do inglês ao italiano - é sempre o mesmo e invariável prodígio. Em todos os idiomas e em todos os países um só traço comum a este intrigante acontecimento literário - o fascínio que desperta em leitores de todos os tipo e perfis.
Deixando de lado Harry Potter e o Quarto dos Segredos, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban e Harry Potter e a Magia do Juízo Final, títulos que se seguiram ao livro fundador da série - Harry Potter e a Pedra Filosofal, que acaba de ser lançado pela editora Rocco, e já na lista dos livros mais vendidos no País, é modelar sobretudo no que se apropria, magistralmente, dos temas para sempre eternos da melhor fabulação narrativa. Não estamos, evidentemente, frente a um novo Alice no País das Maravilhas nem diante de uma versão renovada de O Patinho Feio - incontestáveis clássicos da literatura (infantil? infanto-juvenil?) mas, herdeira da rica tradição fabulista e fabulosa, Joanne Rowling, - não se lhe tire o mérito, como sói acontecer em se tratando de livros que vendem muito, aqui ou além-mar - é uma narradora de mão cheia. Dona de seus instrumentos e capaz de uma proeza cada vez menos comum, seja em best sellers ou em títulos destinados a permanecer no entre-sombra (que não é e nem nunca foi, diga-se de passagem, um lugar desconfortável para determinadas obras literárias...) - Rowling tem o poder de conferir ao seu texto, no mínimo, encantamento, este poder epifânico a que a literatura, mais que qualquer outra arte humana, se presta generosamente.
Tão velha quanto a Humanidade e talvez mais velha que a própria literatura, a reprodução da eterna luta entre o Bem e o Mal, como não poderia deixar de ser, está presente, do começo ao fim, neste Harry Potter e a Pedra Filosofal, como motor, digamos, de sua natureza fundamental. Bruxas malévolas e fadas e/ou seus equivalentes, de enfeitiçada doçura, por mais simplista que isto pareça, são ingredientes essenciais (na ampla acepção da palavra essência) para a invenção de uma história que pretenda dar conta da magia que há de habitar sempre o nosso canhestro e insensato mundo.
Harry Potter é um enjeitado menino de 11 anos que, ainda bebê, teve os pais feiticeiros assassinados por um poderoso bruxo, e escapando milagrosamente da chacina, passa a viver com um casal de tios - André e Petúnia - na tradução de Lia Wyler, numa irritante simplificação do original, a partir de antropônimos da língua portuguesa... Alheio ao sobrenatural, o casal de tios tem um filho gordo e mimado, Duda, invariavelmente favorecido em detrimento da verdadeira gata-borralheira na qual que se converte o pequeno Harry, o indesejado sobrinho-enteado.
Magricela e desengoçado, Harry é o típico herói dickensiano, órfão, à margem de toda alegria, vero saco de pancadas. Isto até o dia de seu aniversário quando, ao completar 12 anos, é literalmente tragado pelo chamado universo paralelo, o seu mundo de raiz, ali onde habitam duendes e merlins, corujas que falam e serpentes que dançam, espelhos que refletem os mortos; e o que é mais excitante, - o lugar de sua natureza primeira -, a de aprendiz de feiticeiro.
E será na escola de feitiçaria de Hogwarts, um centro formador de bruxos de toda espécie, com cadeiras que vão da (tediosa) História da Magia à complexa disciplina do manuseio de Poções, ministrada pelo impagável professor Snape, instruções sobre Herbologia e até a pilotagem de vassouras mágicas, entre outras indizíveis matérias, que Harry Potter encontrará o caminho para enfrentar a pior força do mal - o monstro-feiticeiro responsável pelo assassinato de seus pais. Daí até o final do livro é um suceder vertiginoso de aventuras que atadas umas às outras conferem à história uma velocidade que a faz muito mais próxima dos thrillers cinematográficos do que das fábulas literárias.
Ao apropriar-se do que o cinema e a televisão têm de mais próprio - a rapidez, a transitória brevidade que faz, destes veículos, ativos fabricantes de histórias, legando ao espectador a passividade que parece ser uma marca do entretenimento de nosso tempo, Joanne Rowling talvez aí deixe transparecer, de modo latente, o seu segredo, ou o segredo do estrondoso sucesso de seu livro. É que, por esta via, a novela parece juntar duas pontas quase inconciliáveis - o prazer do texto (que será sempre único e insubstituível) ao prazer da fruição, digamos televisiva e/ou cinematográfica de uma lenda em vários aspectos encantada.
Se alguma lição é possível extrair deste Harry Potter e a Pedra Filosofal é a de que, estruturalmente fiel à melhor literatura, Joanne Rowling alcança imprimir à sua funambulesca novela, a herança milionária dos veículos de nossa época, como o cinema e a TV, mantendo o leitor - o que não é tarefa fácil, admitamos - o tempo todo aferrado ao desenrolar da narrativa. Sem que para isto, destaque-se, seja necessário apelar ao que tais mídias costumam ter de pior - a maléfica confusão entre velocidade e violência, rapidez e pirotécnicas carnificinas, na banalização com que, quase sempre, a morte, facilmente fabricada, torna a vida nas telas um espetáculo sujo, banal, ausente de todo e qualquer sentido.
Ao se erigir como autêntica lenda moderna, Harry Potter e a Pedra Filosofal resgata, acima de tudo, um valor supremo - o da vida mesmo e de suas desdobrantes epifanias. E não há como a fábula, antiga feita a de Esopo, ou contemporânea como a de Steven Spielberg, capaz de colocar no coração de um homem, de modo enfeitiçado, a humanidade inteira.